sábado, 3 de agosto de 2002

Mas há a vida

Clarice Lispector



Mas há a vida

que é para ser

intensamente vivida.

Há o amor.



Que tem que ser vivido

até a última gota.

Sem nenhum medo.

Não mata.




Cotidiano

Não adianta, eu sinto mesmo a sua falta.

Acordo, abro os olhos, e você já está lá. A sua voz, o seu olhar, o seu jeito de sorrir, o seu jeito de pular, de brincar comigo, a criança em você que me matava de alegria. Eu tento te espantar mas está tudo em mim, não adianta. Eu contnuo deitada, penso no que tenho pra fazer, e lá está a sua ausência. Porque de tudo, de qualquer coisa que eu vá fazer, nada há de realmente importante já que não vou dividir com você... Não posso pedir sua opinião, não posso saber se você iria junto, não vou ter seu colo se não der certo e nem o seu abraço se a coisa for um sucesso. E eu choro, olha aí, choro assim como a gente chorava quando tentava se separar e não podia... E então eu me levanto e vou devagar virando uma pessoa acordada. Enquanto escovo os dentes lá vem você no espelho... lá vem aquele tempo em que eu nunca esquecia de escovar os dentes porque tinha te prometido... e quando eu tirava os brincos pra dormir e sorria quando encostava a cabeça no travesseiro porque sabia que no dia seguinte tinha você pra iluminar minha vida. Entro no banho e a água que cai do chuveiro te traz de novo. E eu choro outra vez, choro no meio da água, pra enganar meus olhos. Eu me visto, pego as minhas coisas, entro no carro... Oi. É você. Tem o seu cheiro lá. Depois de todos esses anos ainda tem lá o seu cheiro. O cheiro que eu tomei pra mim, e que nem que eu quisesse sairia daqui. Então, pra que lutar contra ele? Melhor tê-lo, meu. Eu ligo o carro, ligo o rádio... Estamos lá, em tantas melodias, em tantas letras. Eu confesso que não consigo ouvir outras coisas por muito tempo. Você sempre volta, sempre invade o som, sempre vem com alguém que canta você pra mim. Fábio, Zélia, Ivete, Ana, Caetano... Tanta gente. Toda a gente. Mesmo quando eu quase não quero. Lá está a nossa história, lá está a minha dor, lá está a sua partida, as suas decepções, o seu cansaço e o meu dia-após-dia pra tentar sobreviver, renascer, esquecer, ou aprender a viver com tudo isso. O dia passa, você está em cada rua onde passo, em cada sinal de trânsito, em cada pessoa que atravessa na faixa... Você no caminho que eu erro, na ladeira que eu subo, no lugar onde almoço, na comida que eu como, na bebida, na conta que eu queria pagar em dobro. Você está no posto de gasolina, no supermercado, no Mc Donalds, no meu ensaio de teatro, na sopa que tomo à noite... Até na sopa, que você detesta. Eu entro em casa e você está lá. No mesmo lugar onde esteve pela manhã, de onde saiu quando veio comigo pelo dia e de onde nunca saiu porque aí você vive. Na minha casa, em mim. Entro no quarto, te vejo em cada parede, no macaco branco em cima da cama. Eu vou dormir. Antes, peço a Deus por nós e te peço pra voltar. É. Eu te peço pra voltar. Todas as noites eu te peço isso. Te chamo do jeito carinhoso que eu fazia quando a gente brincava, e te imploro: volta, volta. Eu sei que você não vem, mas o instinto de pedir é mais forte do que a certeza de que não vem. Finalmente eu apago a luz. E, no escuro, a única coisa que vejo é você. No silêncio, é só você que eu escuto. E, na solidão da noite, eu choro o último choro do dia. Doído. O frio não acaba nunca. Eu fecho os olhos, tento dormir, demoro, consigo. E a verdade é que eu não queria acordar.

Mas eu acordo, acordo todo dia.

Acordo, abro os olhos, e você já está lá.

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