sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Todo encantamento tem a sua parcela de delírio.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

American Idol

You walked into the party like you were walking onto a yacht
your hat strategically dipped below one eye your scarf it was apricot
you had one eye in the mirror as you watched yourself gavotte
and all the girls dreamed that they'd be your partner they'd be your partner and
you're so vain you probably think this song is about you
you're so vain I bet you think this song is about you
don't you, don't you, don't you

well you had me several years ago when I was still quite naive
well you said that we made such a pretty pair and that you would never leave
but you gave away the things you loved and one of them was me
I had some dreams they were clouds in my coffee clouds in my coffee and
you're so vain you probably think this song is about you you're so vain
I bet you think this song is about you
don't you, don't you, don't you

I had some dreams they were clouds in my coffee
clouds in my coffee...

You're So Vain, Carly Simon

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

without love where would you be now

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Juno

- I'm losing my faith in humanity.
- Think you can narrow it down for me?
- I guess I wonder sometimes if people ever stay together for good.
- You mean like couples?
- Yeah, like people in love. (...) I just need to know if it's possible for two people to stay happy together forever, or at least for a few years.
- It's not easy, that's for sure. (...) In my opinion, the best thing you can do is find a person who loves you for exactly what you are. Good mood, bad mood, ugly, pretty, handsome, what-have-you, the right person will still think the sun shines out your ass. That's the kind of person that's worth sticking with.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Me larga! (e me abraça!)

Como escreve Rufo: "Prender-se, desprender-se, voltar, sair novamente, encontrar, abandonar... Toda a nossa vida segue esse movimento permanente". E relacionar-se significa encontrar um mágico equilíbrio nesse movimento: "Cada qual precisa do outro para se construir e se conquistar, para se tranqüilizar às vezes, e para compartilhar momentos, idéias e desejos. O outro é precioso na medida em que representa uma abertura para o mundo". (...) Talvez a gente se apaixone e se separe sobretudo conforme o ritmo do antigo e inesgotável conflito interno entre nossas aspirações de navegador solitário (a imagem é de Rufo) e nossa nostalgia de uma fusão na qual, enfim, poderíamos descansar de vez.

Contardo Calligaris, na Ilustrada

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Once
Part of me Has Died And won't return And part of me Wants to hide The part that's burned
Once, once Knew how to talk to you Once, once But not anymore
Hear the sirens call me home Hear the sirens call me home
Hear the sirens call me home Hear the sirens call me home
Part of me Has vied To watch it burn And the heart of me Has tried But look what it's become
Once, once I knew how to look for you Once, once But that was before
Once, once I would have laid down to died for you Once, once But not anymore
Hear the sirens call me home Hear the sirens call me home
Hear the sirens call me home Hear the sirens call me home
I'm scratching at the surface now And I'm trying hard to work it out
So much has gone misunderstood This mystery only leads to doubt And I didn't understand
When you reached out to take my hand And if you have something to say You'd better say it now
Cause this is what you've waited for Your chance to even up the score
And as these shadows fall on me now I will somehow
Cause I'm picking up a message Lord And I'm closer than I've ever been before
So if you have something to say Say it to me now Say it to me now Say it to me now
I don't know you But I want you All the more for that Words fall through me
And always fool me And I can't react
And games that never amount To more than they're meant Will play themselves out
Take this sinking boat and point it home We've still got time
Raise your hopeful voice you have a choice You've made it now
Falling slowly, eyes that know me And I can't go back
Moods that take me and erase me And I'm painted black
You have suffered enough And warred with yourself It's time that you won
Take this sinking boat and point it home We've still got time
Raise your hopeful voice you had a choice You've made it now
Falling slowly sing your melody I'll sing along

sábado, 23 de fevereiro de 2008

No meio do meu caminho

No meio do meu caminho tinha um pato
tinha um pato no meio do meu caminho
tinha um pato
no meio do meu caminho tinha um pato.

Nunca me esquecerei desse acontecimento.
Nunca me esquecerei que no meio do meu caminho
tinha um pato
tinha um pato no meio do meu caminho
no meio do meu caminho tinha uma pato.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Oh, porque metade de mim é amor e a outra metade também

Que a mulher que eu amo seja sempre amada, mesmo que distante.
Porque metade de mim é partida e a outra metade é saudade.
Porque metade de mim é o que eu ouço, mas a outra metade é o que calo.
Que essa minha vontade de ir embora se transforme na calma e na paz que eu mereço.
Que essa tensão que me corrói por dentro seja um dia recompensada.
Que o medo da solidão se afaste, que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.
Que não seja preciso mais do que uma simples alegria para me fazer aquietar o espírito.
E que o teu silêncio me fale cada vez mais.
Porque metade de mim é abrigo, mas a outra metade é cansaço.
Porque metade de mim é o que eu grito, mas a outra metade é silêncio.
(O.M.)

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Renúncia

Fidel e eu.

domingo, 17 de fevereiro de 2008


"Comadre Joana já saiu ilesa de muito inferno, muita tempestade.
Precisa mais que uma calamidade pra derrubar aquela fortaleza.
Mas desta vez eu acho que não agüenta."
.
.
.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

um primeiro fio de sangue negro

Mas era primavera. Até o leão lambeu a testa glabra da leoa. Os dois animais louros. A mulher desviou os olhos da jaula, onde só o cheiro quente lembrava a carnificina que ela viera buscar no Jardim Zoológico. Depois o leão passou enjubado e tranqüilo, e a leoa lentamente reconstituiu sobre as patas estendidas a cabeça de uma esfinge. "Mas isso é amor, é amor de novo", revoltou-se a mulher tentando encontrar-se com o próprio ódio mas era primavera e os dois leões se tinham amado. Com os punhos nos bolsos do casaco, olhou em torno de si, rodeada pelas jaulas, enjaulada pelas jaulas fechadas. Continuou a andar. Os olhos estavam tão concentrados na procura que sua vista às vezes se escurecia num sono, e então ela se refazia como na frescura de uma cova.

Mas a girafa era uma virgem de tranças recém-cortadas. Com a tola inocência do que é grande e leve e sem culpa. A mulher do casaco marrom desviou os olhos, doente, doente. Sem conseguir - diante da aérea girafa pousada, diante daquele silencioso pássaro sem asas-, sem conseguir encontrar dentro de si o ponto pior de sua doença, o ponto mais doente, o ponto de ódio, ela que fora ao Jardim Zoológico para adoecer. Mas não diante da girafa que mais era paisagem que um ente. Não diante daquela carne que se distraía em altura e distância, a girafa quase verde. Procurou outros animais, tentava aprender com eles a odiar. O hipopótamo, o hipopótamo úmido. O rolo roliço de carne, carne redonda e muda esperando outra carne roliça e muda. Não. Pois havia tal amor humilde em se manter apenas carne, tal doce martírio em não saber pensar.



Mas era primavera, e, apertando o punho no bolso do casaco, ela mataria aqueles macacos em levitação pela jaula, macacos felizes como ervas, macacos se entrepulando suaves, a macaca com olhar resignado de amor, e outra macaca dando de mamar. Ela os mataria com quinze secas balas: os dentes da mulher se apertaram até o maxilar doer. A nudez dos macacos. O mundo que não via perigo em ser nu. Ela mataria a nudez dos macacos. Um macaco também a olhou segurando as grades, os braços descarnados abertos em crucifixo, o peito pelado exposto sem orgulho. Mas não era no peito que ela mataria, era entre os olhos do macaco que ela mataria, era entre aqueles olhos que a olhavam sem pestanejar. De repente a mulher desviou o rosto: é que os olhos do macaco tinham um véu branco gelatinoso cobrindo a pupila, nos olhos a doçura da doença, era um macaco velho - a mulher desviou o rosto, trancando entre os dentes um sentimento que ela não viera buscar, apressou os passos, ainda voltou a cabeça espantada para o macaco de braços abertos: ele continuava a olhar para a frente: "Oh não, não isso", pensou. E enquanto fugia, disse: "Deus, me ensine somente a odiar."

"Eu te odeio", disse ela para um homem cujo crime único era o de não amá-la. "Eu te odeio", disse muito apressada. Mas não sabia sequer como se fazia. Como cavar na terra até encontrar a água negra, como abrir passagem na terra dura e chegar jamais a si mesma? Andou pelo Jardim Zoológico entre mães e crianças. Mas o elefante suportava o próprio peso. Aquele elefante inteiro a quem fora dado com uma simples pata esmagar. Mas que não esmagava. Aquela potência que no entanto se deixaria docilmente conduzir a um circo, elefante de crianças. E os olhos, numa bondade de velho, presos dentro da grande carne herdada. O elefante oriental. Também a primavera oriental, e tudo nascendo, tudo escorrendo pelo riacho.

A mulher então experimentou o camelo. O camelo em trapos, corcunda, mastigando a si próprio, entregue ao processo de conhecer a comida. Ela se sentiu fraca e cansada, há dois dias mal comia. Os grandes cílios empoeirados do camelo sobre os olhos que se tinham dedicado à paciência de um artesanato interno. A paciência, a paciência, a paciência, só isso ela encontrava na primavera ao vento. Lágrimas encheram os olhos da mulher, lágrimas que não correram, presas dentro da paciência de sua carne herdada. Somente o cheiro da poeira do camelo vinha de encontro ao que ela viera: ao ódio seco, não a lágrimas. Aproximou-se das barras do cercado, aspirou o pó daquele tapete velho sangue cinzento circulava, procurou a tepidez impura, o prazer percorreu suas costas até o mal-estar, mas não ainda o mal-estar que ela viera buscar. No estômago contraiu-se em cólica de fome a vontade de matar. Mas não o camelo de estopa. "Oh, Deus, quem será meu par neste mundo?"

Então foi sozinha ter a sua violência. No pequeno parque de diversões do Jardim Zoológico esperou meditativa na fila de namorados pela sua vez de se sentar no banco da montanha-russa.

E ali estava agora sentada, quieta no casaco marrom. O banco ainda parado, a maquinaria da montanha-russa ainda parada. Separada de todos no seu banco parecia estar sentada numa igreja. Os olhos baixos viam o chão entre os trilhos. O chão onde simplesmente por amor - amor, amor, não o amor! -, onde por puro amor nasciam entre os trilhos ervas de um verde leve tão tonto que a fez desviar os olhos em suplício de tentação. A brisa arrepiou-lhe os cabelos da nuca, ela estremeceu recusando, em tentação recusando, sempre tão mais fácil amar.

Mas de repente foi aquele vôo de vísceras, aquela parada de um coração que se surpreende no ar, aquele espanto, a fúria vitoriosa com que o banco a precipitava do nada e imediatamente a soerguia como uma boneca de saia levantada, o profundo ressentimento com que ela se tornou mecânica, o corpo automaticamente alegre - o grito das namoradas! -, seu olhar ferido pela grande surpresa, a ofensa, "faziam dela o que queriam", a grande ofensa - o grito das namoradas! -, a enorme perplexidade de estar espasmodicamente brincando faziam dela o que queriam, de repente sua candura exposta. Quantos minutos? Os minutos a um grito prolongado de trem na curva, e a alegria de um novo mergulho no ar insultando-a com um pontapé, ela dançando descompassada ao vento, dançando apressada, quisesse ou não quisesse o corpo sacudia-a como o de quem ri, aquela sensação de morte às gargalhadas, morte sem aviso de quem não rasgou antes os papéis da gaveta, não a morte dos outros, a sua, sempre a sua. Ela que poderia ter aproveitado o grito dos outros para dar seu urro de lamento, ela se esqueceu, ela só teve espanto.

E agora este silêncio também é súbito. Estavam de volta à terra, a maquinaria de novo inteiramente parada.

Pálida, jogada fora de uma igreja, olhou a terra imóvel de onde partira e onde de novo fora entregue. Ajeitou as saias com recato. Não olhava para ninguém. Contrita como no dia em que no meio de todo o mundo tudo o que tinha na bolsa caíra no chão e tudo o que tivera valor enquanto secreto na bolsa, ao ser exposto na poeira da rua, revelara a mesquinharia de uma vida íntima de precauções: pó-de-arroz, recibo, caneta-tinteiro, ela recolhendo do meio-fio os andaimes de sua vida. Levantou-se do banco estonteada como se tivesse se sacudindo de um atropelamento. Embora ninguém prestasse atenção, alisou de novo a saia, fazia o possível para que não percebessem que estava fraca e difamada, protegia com altivez os ossos quebrados. Mas o céu lhe rodava no estômago vazio; a terra, que subia e descia a seus olhos, ficava por momentos distante, a terra que é sempre tão difícil. Por um momento a mulher quis, num cansaço de choro mudo, estender a mão para a terra difícil: sua mão se estendeu como a de um aleijado pedindo. Mas como se tivesse engolido o vácuo, o coração surpreendido.

Só isso? Só isso. Da violência, só isso.

Recomeçou a andar em direção aos bichos. O quebranto da montanha-russa deixara-a suave. Não conseguiu ir muito adiante: teve que apoiar a testa na grade de uma jaula, exausta, a respiração curta e leve. De dentro da jaula o quati olhou-a. Ela o olhou. Nenhuma palavra trocada. Nunca poderia odiar o quati, que no silêncio de um corpo indagante a olhava. Perturbada, desviou os olhos da ingenuidade do quati. O quati curioso lhe fazendo uma pergunta como uma criança pergunta. E ela desviando os olhos, escondendo dele a sua missão mortal. A testa estava tão encostada às grades que por um instante lhe pareceu que ela estava enjaulada e que um quati livre a examinava.

A jaula era sempre do lado onde ela estava: deu um gemido que pareceu vir da sola dos pés. Depois outro gemido.

Então, nascida do ventre, de novo subiu, implorante, em onda vagarosa a vontade de matar - seus olhos molharam-se gratos e negros numa quase felicidade, não era o ódio ainda, por enquanto apenas vontade atormentada de ódio como um desejo, à promessa do desabrochamento cruel, um tormento como se amor, a vontade de ódio se prometendo sagrado sangue e triunfo, a fêmea rejeitada espiritualizara-se na grande esperança. Mas onde, onde encontrar o animal que lhe ensinasse a ler o seu próprio ódio? O ódio que lhe pertencia por direito mas que em dor ela não alcançava? Onde aprender a odiar para não morrer de amor? E com quem? O mundo de primavera, o mundo das bestas que na primavera se cristianizam em patas que arranham mas não dói... oh não mais esse mundo! não mais esse perfume, não esse arfar cansado, não mais esse perdão em tudo o que um dia vai morrer como se fora para dar-se. Nunca o perdão, se aquela mulher perdoasse mais uma vez, uma só vez que fosse, sua vida estaria perdida - deu um gemido áspero e curto, o quati sobressaltou-se -, enjaulada olhou em torno de si e como não era pessoa em quem prestassem atenção, encolheu-se como uma velha assassina solitária, uma criança passou correndo sem vê-la.

Recomeçou então a andar, agora apequenada, dura, os punhos de novo fortificados nos bolsos, a assassina incógnita, e tudo estava preso no seu peito. No peito que só sabia resignar-se, que só sabia suportar, só sabia pedir perdão, só sabia perdoar, que só aprendera a ter a doçura da infelicidade, e só aprendera a amar, a amar, a amar. Imaginar que talvez nunca experimentasse o ódio de que sempre fora feito o seu perdão, fez seu coração gemer sem pudor, ela começou a andar tão depressa que parecia ter encontrado um súbito destino. Quase corria, os sapatos a desequilibravam, e davam-lhe uma fragilidade de corpo que de novo a reduzia a fêmea de presa, os passos tomaram mecanicamente o desespero implorante dos delicados, ela que não passava de uma delicada. Mas pudesse tirar os sapatos, poderia evitar a alegria de andar descalça? Como não amar o chão em que se pisa? Gemeu de novo, parou diante das barras de um cercado, encostou o rosto quente no enferrujado frio do ferro. De olhos profundamente fechados procurava enterrar a cara entre a dureza das grades, a cara tentava uma passagem impossível entre barras estreitas, assim como antes vira o macaco recém-nascido buscar na cegueira da fome o peito da macaca. Um conforto passageiro veio-lhe do modo como as grades pareceram odiá-la opondo-lhe a resistência de um ferro gelado.

Abriu os olhos devagar. Os olhos vindos de sua própria escuridão nada viram na desmaiada luz da tarde. Ficou respirando. Aos poucos recomeçou a enxergar, aos poucos as formas foram se solidificando, ela cansada, esmagada pela doçura de um cansaço. Sua cabeça ergueu-se em indagação para as árvores de brotos nascendo, os olhos viram as pequenas nuvens brancas. Sem esperança, ouviu a leveza de um riacho. Abaixou de novo a cabeça e ficou olhando o búfalo ao longe. Dentro de um casaco marrom, respirando sem interesse, ninguém interessado nela, ela não interessada em ninguém.

Certa paz enfim. A brisa mexendo nos cabelos da testa como nos de pessoa recém-morta, de testa ainda suada. Olhando com isenção aquele grande terreno seco rodeado de grades altas, o terreno do búfalo. O búfalo negro estava imóvel no fundo do terreno. Depois passeou ao longe com os quadris estreitos, os quadris concentrados. O pescoço mais grosso que as ilhargas contraídas. Visto de frente a grande cabeça mais larga que o resto do corpo, como uma cabeça decepada. E na cabeça os cornos. De longe ele passeava devagar com seu torso. Era um búfalo negro. Tão preto que, a distância, a cara não tinha traços. Sobre o negror a alvura erguida dos cornos.

A mulher talvez fosse embora mas o silêncio era bom no cair da tarde.

E no silêncio do cercado, os passos vagarosos, a poeira seca sob os cascos secos. De longe, no seu calmo passeio, o búfalo negro olhou-a um instante. No instante seguinte, a mulher de novo viu apenas o duro músculo do corpo. Talvez não a tivesse olhado. Não podia saber, porque nas trevas da cabeça ela só distinguia os contornos. Mas de novo ele pareceu tê-la visto ou sentido.

A mulher aprumou um pouco a cabeça, recuou-a ligeiramente em desconfiança. Mantendo o corpo imóvel, a cabeça recuada, ela esperou.

E mais uma vez o búfalo pareceu notá-la.

Como se ela não tivesse suportado sentir o que sentira, desviou subitamente o rosto e olhou uma árvore. Seu coração não bateu no peito, o coração batia oco entre o estômago e os intestinos.

O búfalo deu outra volta lenta. A poeira. A mulher apertou os dentes, o rosto todo doeu um pouco.

O búfalo como dorso preto. No entardecer luminoso era um corpo enegrecido de tranqüila raiva, a mulher suspirou devagar. Uma coisa branca espalhara-se dentro dela, branca como papel, fraca como papel, intensa como uma brancura. A morte zumbia nos seus ouvidos. Novos passos do búfalo trouxeram-na a si mesma e, em novo longo suspiro, ela voltou à tona. Não sabia onde estivera. Estava de pé, muito débil, emergida naquela coisa branca e remota onde estivera.

E de onde olhou de novo o búfalo.

O búfalo agora maior. O búfalo negro. Ah, disse de repente com uma dor. O búfalo de costas para ela, imóvel. O rosto esbranquiçado da mulher não sabia como chamá-lo. Ah!, disse provocando-o. Ah!, disse ela. Seu rosto estava coberto de mortal brancura, o rosto subitamente emagrecido era de pureza e veneração. Ah!, instigou-o com os dentes apertados. Mas de costas para ela, o búfalo inteiramente imóvel.

Apanhou uma pedra no chão e jogou para dentro do cercado. A imobilidade do dorso mais negra ainda se aquietou: a pedra rolou inútil.

Ah! disse sacudindo as barras. Aquela coisa branca se espalhava dentro dela, viscosa como uma saliva. O búfalo de costas.

Ah!, disse. Mas dessa vez porque dentro dela escorria enfim um primeiro fio de sangue negro.

O primeiro instante foi de dor. Como se para que escorresse este sangue se tivesse contraído o mundo. Ficou parada, ouvindo pingar como uma grota aquele primeiro óleo amargo, a fêmea desprezada. Sua força ainda estava presa entre barras, mas uma coisa incompreensível e quente, enfim incompreensível, acontecia, uma coisa como uma alegria sentida na boca. Então o búfalo se voltou para ela.

O búfalo voltou-se, imobilizou-se, e, à distância, encarou-a.

Eu te amo, disse ela então com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse implorando amor ao búfalo.

Enfim provocado, o grande búfalo aproximou-se sem pressa.

Ele se aproximava, a poeira erguia-se. A mulher esperou de braços pendidos ao longo do casaco. Devagar ele se aproximava. Ela não recuou um só passo. Até que ele chegou às grades e ali parou. Lá estavam o búfalo e a mulher, frente a frente. Ela não olhou o cara, nem a boca, nem os cornos. Olhou seus olhos.

E os olhos do búfalo, os olhos olharam seus olhos. E uma palidez tão funda foi trocada que a mulher se entorpeceu dormente. De pé, em sono profundo. Olhos pequenos e vermelhos a olhavam. Os olhos do búfalo. A mulher tonteou surpreendida, lentamente meneava a cabeça. O búfalo calmo. Lentamente a mulher meneava a cabeça, espantada com o ódio com que o búfalo, tranqüilo de ódio, a olhava. Quase inocentada, meneando uma cabeça incrédula, a boca entreaberta. Inocente, curiosa, entrando cada vez mais fundo dentro daqueles olhos que sem pressa a fitavam, ingênua, num suspiro de sono, sem querer nem poder fugir, presa ao mútuo assassinato. Presa como se sua mão se tivesse grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara. Presa, enquanto escorregava enfeitiçada ao longo das grades. Em tão lenta vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um búfalo.


O Búfalo, Clarice Lispector


terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

medo

por que apago o que escrevo?
para evitar ao que não me atrevo?
para fugir do apego?
ou porque cometi um erro?


...


minúscula












...




intervalo

é como um botão que a gente simplesmente desliga
quem tem, aproveita
quem não tem, se arrebenta

é como uma bateria que a gente deixa descarregar
quem consegue, recarrega
quem não consegue, sossega

é como uma ampulheta que a gente vira e revira
quem tem companhia, ri enquanto espera
quem não tem, se aterra

é como uma caixa de bombons que acaba
quem consegue, logo compra outra
quem não consegue, poupa

é como a água que seca sob o sol
quem tem sede, bebe o que escorre
quem não tem, morre

é como restos que a gente deixa pra trás
quem consegue, dá as costas e esquece
quem não consegue, padece

é como quando a gente é roubada
quem tem colo, ignora
quem não tem, chora

é como oferecer a outra face
quem consegue, reza
quem não consegue, despreza

é como fazer poesia ou amor
quem tem palavras, fala
quem não tem, se cala.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

buraco

eu lembro que só podia ouvir a minha própria respiração.
sentia os carinhos
as flores
os cheiros.
via através das pálpebras
as luzes
as gentes
os choros.
mas só podia escutar a minha respiração.
alta, pausada, tranqüila.
era o som que eu tinha da despedida de mim mesma.
a respiração alta e tranqüila do mergulho profundo.

colocaram a tampa.
depois de um arrepio,
passei a ouvir também os passos.
muitos, compassados e lentos.
quase a me ninar
num balanço sem volta.

fim dos passos.
silêncio.
um longo silêncio inacabado.
e a chuva de terra.
o som da chuva de terra
aumentando em tempestade
e silenciando em si todos os outros sons.

súbito, o nada.
pausa.
vácuo.
limbo.
breu.

aqui, nem mesmo a lembrança do que acabei de contar.
nem mesmo a lembrança de haver lembranças.

nada.
pausa.
vácuo.
limbo.
breu.
breu.
breu.
eu.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

não, ela não deixou bilhete mesmo.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

remédio

ela não deixou bilhete.
mas queria ir faz tempo,
todo mundo sabia.
tentaram fazê-la esquecer,
disfarçar a idéia,
ocupar-lhe o pensamento,
os dias, o tempo.
mas quando a gente quer ir,
não tem enganação que dê jeito,
não tem argumento,
não tem negociação.
ela não deixou bilhete
porque estava atrasada demais.
foi recebida ao som de aleluia.
a reserva era para anos atrás.
e, enfim, ela viu com olhos brilhantes:
não era pior, não.
devia ter ido antes.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

o 7 bíblico

É a soma de 4 (número da totalidade) + 3 (número da unidade e da Trindade).
Por isso é o número perfeito, indica o máximo da perfeição;

indica séries completas como no Apocalipse: 7 Cartas, 7 Selos, 7 cabeças;
o Cordeiro imolado recebe 7 dons;
o sábado é o sétimo dia;
Deus fez a Criação em 7 dias;
cada sétimo ano é sabático (descanso para a terra e libertação dos oprimidos);
e depois de 7 vezes, 7 anos, vem o Jubileu;
é a duração limitada das perseguições;
é o tempo controlado por Deus.

Não se deve perdoar 7 vezes, mas 70 vezes 7.
(Mt 18,22)

(mas tem coisa que dói, viu...)

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

um pessimismo rápido e passageiro

dormi
dormi
dormi
escrevi
comi
saí
li o passado
chorei adoidado
e comecei a acreditar que a gente só tem mesmo uma chance.
se passou, passou.
motorista, passageiro, cobrador.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

...

Não, talvez não seja isso. As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito. Ou, pelo menos, não era apenas isso. Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só; meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias. E nem todas posso contar - uma palavra mais verdadeira poderia de eco em eco fazer desabar pelo despenhadeiro as minhas altas geleiras.

de Os desastres de Sofia, Clarice Lispector

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

segunda-feira de carnaval

o bate-estaca
que era fora
agora é dentro


Perdi vinte em vinte e nove amizades
Por conta de uma pedra em minhas mãos
Me embriaguei morrendo vinte e nove vezes
Estou aprendendo a viver sem você
Já que você não me quer mais
Passei vinte e nove meses no navio
E vinte e nove dias na prisão
E aos vinte e nove, com retorno de Saturno
Decidi começar a viver
Quando você deixou de me amar
Aprendi a perdoar
E a pedir perdão
E vinte e nove anjos me saudaram
E tive vinte e nove amigos outra vez

Vinte e Nove, Renato Russo

domingo, 3 de fevereiro de 2008

o sono da manhã

a noite em claro no carnaval
é quase uma obrigação
ser feliz
não

sábado, 2 de fevereiro de 2008

dois de fevereiro

- ô, janaína, cuida dessa menina,
disse a mãe largando a mãozinha da pequena,
antes de se jogar das pedras ao mar, para sempre.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

carnavão

a fantasia de amar é vã, meu irmão
é um engano
um brinquedo humano
uma fabricação

a fantasia de amar é um não
é uma tentação que mata
uma barata
uma migalha de pão

a gente costura a fantasia à mão
rasga o dedo, dá o sangue
pinta circo, folclore, bang-bang
prega cada botão

no fim do desfile, é fantasia no chão
é carregar um rei momo no colo
a bateria estourando os miolos
a pior pontuação

a fantasia de amar não tem perdão
são anos perdidos
carnavais esquecidos
samba triste, e solidão