domingo, 30 de setembro de 2007

desejo

um dia alguém me cantou isto.
e conseguiu o que queria.
agora eu canto pra você.
e espero conseguir...

ah! como eu queria
te dizer alguma coisa
que te afastasse do peito
toda essa angustia, esse medo
te devolvesse a alegria
te resolvesse os delirios

ah! como eu queria
te alucinar por completo
de tanto amor, tanto afeto
te recobrar a esperança
e te levar lá pra casa
pra eu cuidar de você

ah! como eu queria
te despertar já que o dia
nos deu o sol de presente
e a gente pode sonhar

ah! como eu queria
me esparramar no teu colo
te receber como a areia
recebe as ondas do mar

ah! como eu queria!
ah, como eu queria

Fabio Jr.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Um dia
Caminhávamos, juntos e separados, entre os desvios bruscos da floresta. (...)
Que casas, que deveres, que amores havíamos largado - nós mesmos o não saberíamos dizer. Não éramos, nesse momento, mais que caminhantes entre o que esquecêramos e o que não sabíamos, cavaleiros a pé do ideal abandonado. Mas nisso, como no som constante das folhas pisadas, e no som sempre brusco do veneno incerto, estava a razão de ser da nossa ida, ou da nossa vinda, pois, não sabendo o caminho ou porque o caminho, não sabíamos se partíamos se chegávamos. E sempre, em torno nosso, sem lugar sabido ou queda vista,
o som das folhas que escombravam adormecia de tristeza a floresta.
Nenhum de nós queria saber do outro, porém nenhum de nós sem ele prosseguiria. A companhia que nos fazíamos era uma espécie de sono que cada um de nós tinha. O som dos passos uníssonos ajudava cada um a pensar sem o outro, e os próprios passos solitários tê-lo-iam despertado. A floresta era toda clareiras falsas, como se fosse falsa, ou estivesse acabando, mas nem acabava a falsidade, nem acabava a floresta. Nossos passos uníssonos seguiam constantes, e em torno do que ouvíamos das folhas pisadas ia um som vago de folhas caindo, na floresta tornada tudo, na floresta igual ao universo.
Quem éramos?
Seríamos dois ou duas formas de um? Não o sabíamos nem o perguntávamos. Um sol vago devia existir, pois na floresta não era noite. Um fim vago devia existir, pois caminhávamos. Um mundo qualquer devia existir, pois existia uma floresta. Nós, porém, éramos alheios ao que fosse ou pudesse ser, caminheiros uníssonos e intermináveis sobre folhas mortas, ouvidores anônimos e impossíveis de folhas caindo. Nada mais. Um sussuro, ora brusco ora suave, do vento incógnito, um murmúrio, ora alto ora baixo, das folhas presas, um resquício, uma dúvida, um propósito que findara, uma ilusão que nem fora - a floresta, e dois caminheiros, e eu, eu, que não sei qual deles era, ou se era ou dois, ou nenhum, e assisti, sem ver o fim, à tragédia de não haver nunca mais do que o outono e a floresta, e o vento sempre brusco e incerto, e as folhas sempre caídas ou caindo. E sempre, como se por certo houvesse fora um sol e um dia, via-se claramente, para fim nenhum, no silêncio rumoroso da floresta.
do Desassossego, Fernando Pessoa

terça-feira, 11 de setembro de 2007


DIVA
Dante Ozzetti

Cada palavra que eu não digo
Digo
Digo-lhe tudo pra se parecer comigo
Cada palavra que eu não deva
Digo
Devo-lhe tudo pra me parecer contigo

sábado, 8 de setembro de 2007

Before Sunset

I feel I was never able to forget anyone I've been with.
Because each person have, you know, specific qualities.
You can never replace anyone. What is lost is lost.
Each relationship, when it ends, really damages me. I haven't fully recovered.
(...) I will miss of the person the most mundane things.
Like I'm obsessed with little things. Maybe I'm crazy, but...
When I was a little girl, my mom told me that I was always late to school.
One day she followed me to see why.
I was looking at chestnuts falling from the trees, rolling on the sidewalk...
or ants crossing the road... the way a leaf casts a shadow on a tree trunk...
Little things. I think it's the same with people.
I see in them little details, so specific to each other, that move me,
and that I miss, and... will always miss.
You can never replace anyone, because everyone is made of such beautiful specific details.

Celine, em Antes do Pôr-do-sol
que eu vi hoje depois de Antes do Amanhecer
e antes de Premonições, Como Água Para Chocolate e Indochina

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

independência ou morte

hoje faltei
não tem presente
o passado é um grito
o futuro
mente

(entre mortos e muito feridos
do dia da independência: eu.)

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

tribunal

às vezes escrevo só por escrever
não quero dizer nada
nem falo de mim
enfim

e um cachorro fofo
é só um cachorro fofo

parada

caminha
a linha
fina
mina
a dor
o amor

chora
a hora
funda
inunda
a dor
o amor

cede
e pede
colo
esfolo
a dor
o amor

corre
e morre
fraca
aplaca
a dor
o amor

a dor
o amor

não sei mais escrever outra coisa.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

ruínhá

não há trégua, não há.
não há cachoeira.
não há resgate.
não há, simplesmente, ar.
não há segunda chance.
não há o romance ideal.
não há, eu sei, não há.
não há mentira que sustente.
não há memória.
não há presente.
não há perdão, perdão.
não há esperança.
não há.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

o rato
(caio fernando abreu)

Assim: do lado direito, um casal de velhos; do lado esquerdo, uma mulher com duas crianças atrás, dois rapazes de ar indefinido à frente, a toalha vermelha da mesa ampliando-se em perspectiva até a janela aberta para a noite. O ar ressecado estrangula os movimentos, depositado como poeira sobre as faces desfeitas de feições, expressões escorrendo em suor ao calor inesperado sobrevindo depois da chuva. Um rato caminha sobre uma das vigas de sustentação. Ele olha o rato, e o rato não o vê. Olha o rato, mas as outras pessoas não sabem que seu olhar olha o rato. Sozinho naquele bar, naquela rua, em todos os bares em todas as ruas do mundo, no mundo inteiro - sozinho: ele e o rato, natureza cinza equilibrada sobre quatro patas.

-Você prefere lasanha ou ravióli?

-O meu dia só existe porque você existe dentro dele.

-Garçom, por favor .

-Vou-me embora, não suporto mais este bar, este calor, esta mesa. Não suporto mais você.

-Eu quero batatinha frita.

-Hoje existir me dói feito uma bofetada.

-Sem cebola, por favor.

Quando partiu, levava as mãos no bolso, a cabeça erguida. Não olhava para trás, porque olhar para trás era uma maneira de ficar num pedaço qualquer para partir incompleto, ficado em meio para trás. Não olhava, pois, e, pois não ficava. Completo, partiu. Não vê, mas pode sentir o toque áspero da pele recoberta de pêlos em suas mãos que seguram o garfo e a faca, e o toque é quase uma carícia - uma nauseante carícia de bicho à procura de qualquer coisa. (...)

-Não posso comer massa, meu bem, engordo horrores.

-Porque se você não vem é como se o tempo fosse passado em branco, como se as coisas não chegassem a se cumprir porque você não soube delas.

-Infelizmente o camarão acabou.

-Estou completamente cheio.

-Bem molezinha, com bastante sal.

-Mas este prato está sujo, que absurdo!!!


-Tudo dói, e eu já nem sei mais para onde ir nem o que fazer, se ao menos você me amasse um pouco, não estaria aqui e agora. neste bar. sozinho. longe de você e de mim.

O rato, agora, em passos hesitantes, a cauda enroscando-se em madeiras. Esfarela devagar um pedaço de pão, o miolo escorre por entre os dedos, feito água, feito vento, feito todas as coisas que passam e não marcam em nada, em nenhum recanto do corpo físico além de memória. (...) O sexo: ponto de chama entre as pernas. Estende a mão, mas o rato foge num movimento brusco.

-Prefiro carne, ao menos não engorda tanto.

-E se você vem, fica tudo maior, mais amplo, sei lá mas é como se eu existisse dum jeito mais completo, entende?

-Temos peixe. Filé de peixe, serve?

-De repente parece que todo mundo vai começar a morder a gente.

-Feijão não, eu odeio feijão.

-Uma merda, tudo. Uma grande merda.

Súbito escorrega para uma região desconhecida, onde tudo se dilui em sombra, em silêncio. Na sombra e no silêncio, o rato desliza manso, subindo a parede até alcançar novamente a viga que o sustenta. A mulher o encarou ofendida: se você gosta de homem, o problema é seu, meu filho, não tenho nada com isso. Insistiu. O guarda o soltou e ele saiu caminhando de cabeça baixa, depois de ter jogado o cartaz na sarjeta: "O povo passa fome". Jamais olhava para trás, jamais: o que estava feito, estava feito, estava consumado, estava para sempre imutável, inamoldável, fechado em si mesmo, estanque: o tempo. (...) Eu pago, disse. Mas o rato voltou, sem que ninguém o veja.

-Tudo bem, um bife, mas bem pequenininho, bem passado e sem molho, hein?

-Ninguém toma de ninguém esse tipo de coisa, ninguém.

-Temos sopas, também. Madame é quem sabe.

-Me deixa ir embora. Eu não quero mais te ver. Nunca mais.

-Arroz? Mas eu só queria batatinha.

-E a faca? Será que é preciso comer com as mãos?

-Se ao menos dessa revolta, dessa angústia, saísse alguma coisa que prestasse.

Qualquer coisa: eu teria ao menos algo em que me segurar, qualquer coisa. O extremo da revolta seria a coisa feita, pronta para que segurassem nela. Eram vermelhos? Ou seriam azuis? Nunca vira os olhos de um rato bem de perto. Só a cauda, estendendo-se de elo em elo, até o final pontudo, como uma serpente. Não suportaria encarar um animal, qualquer que fosse. (...) A cama vibrava. A noite vibrava. O mundo vibrava. (...) A mão machucada de sustentar o grito do cartaz, os pés sob a revolta, os ombros doídos embaixo da contestação. Foi de repente que começou a correr para longe daquilo, esmagado pela exigência, pelo espanto de estar pedindo alguma coisa que nem para si era. Pedir exigia uma participação íntima que ele não tinha, e seus gritos ressoariam falsos por todas as esquinas, seus ombros curvariam ao peso acumulado, a cabeça baixa, rabo entre as pernas. O susto do rato com a bolinha de pão jogada sobre a cabeça.

-Imagine, ele falou que tinha achado o chapéu detestável.

-Só eu sei que cheguei à humildade máxima que um ser humano pode atingir: confessar a outro ser humano que precisa dele para existir.

-Quem sabe uma feijoada?

-Daqui a pouco vai começar a chover de novo.


-Tá bem, mas só se vier um sorvete depois.

-Quer fazer o favor de me alcançar o copo?

-Mas não sai nada. Nada. Nem uma lágrima.

Aproxima-se. Os olhos agrandaram na procura consumada em encontro, as patas avançaram para o objeto - o cinzento arrastando-se sobre o amarelo dos tapetes.

-Inveja, pura inveja, conheço demais essa gente.

-E no momento em que se confessa a precisão, perde-se tudo, eu sei.

-Não? Quem sabe então um... um... um...

-Não adianta insistir. Agora eu vou.

-De creme, não. Quero de morango.

-E essa coca-cola que não vem?

-Sei lá, vou dormir que é melhor.


Agrandava-se. Senhora dona Cândida, coberta de ouro e prata, descubra o seu rosto, quero ver a sua graça. Descobria-se. Afastava o ouro, a prata, as mãos que escondiam o rosto e dentro, o que havia? Contém-se e começa a contar-se baixinho: Era uma vez: assim: do lado direito, um casal de velhos; do lado esquerdo, uma mulher com duas crianças; atrás, dois rapazes de ar indefinido; à frente, a toalha vermelha da mesa ampliando-se em perspectiva até a janela aberta para a noite". E o rato. Quis gritar, mas era tão tarde, era muito tarde, era sempre tarde. Viu o garçom arrumando os pratos sobre a mesa, a fumaça elevando-se da comida quente. Mas a vidraça ainda não refletia a cor exata dos olhos. Baixou a cabeça para o prato, apoiado nas quatro patas cinzentas, o focinho fino, as pessoas esfarelando pães e jogando-lhe pedaços, espantou-se da delicadeza de suas próprias garras, da leveza de seu próprio corpo, agora apertam sua cauda entre os pés, e ele foge, tenta fugir, mas alguém sopra em seus ouvidos algo parecido com uma canção de ninar. Ou uma canção de guerra, de ódio, de nojo, de sangue, uma cantiga de roda, ou simplesmente um grito estridente, agudo, trêmulo, incompreensível. Um grito humano.