segunda-feira, 23 de setembro de 2002

Trechos dos primeiros contos da minha favorita

Laços de Família, Clarice Lispector

Devaneio e Embriaguez duma Rapariga
Os olhos não se abandonavam,
os espelhos vibravam ora escuros, ora luminosos.
...ela se abanava no Brasil.
...aproveitou para amanhecer esquisita.

Ela ainda à cama, tranqüila, improvisada. Ela amava...
Estava previamente a amar o homem que um dia ela ia amar.

Na cama a pensar, a pensar, quase a rir como uma bisbilhotice.
A pensar, a pensar. O quê? Ora, lá ela sabia. Assim deixou-se a ficar.

Nessa noite, até dormir, fantasticou, fantasticou...
(...) Acordou com o dia atrasado.

Sua sensibilidade incomodava sem ser dolorosa,
como uma unha quebrada.

Ai que não tinha nada a ver com isso, a bem dizer:
mas já d'entrada crescera-lhe a vontade d'ir e d'encher-lhe,
à cara de santa loira da rapariga, uns bons sopapos,
a fidalguita de chapéu. Que nem roliça era, era chata de peito.

Mas depois de amanhã aquela sua casa havia de ver:
dar-lhe-ia um esfregaço com água e sabão
que se lhe arrancariam as sujidades! a casa havia de ver!


Amor
Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se.
...as crianças vindas do colégio exigiam-na.
...olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê.
Ela adormecia dentro de si.
O mundo era tão rico que apodrecia.
O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.
Abarçou o filho, quase a ponto de machucá-lo.

E como a uma borboleta,
Ana prendeu o instante entre os dedos
antes que ele nunca mais fosse seu.

E, se atravessara o amor e o seu inferno,
penteava-se agora diante do espelho,
por um instante sem nenhum mundo no coração.


Uma Galinha
Foi então que aconteceu.
De pura afobação a galinha pôs um ovo.

Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha,
ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!

Uma vez ou outra, sempre mais raramente.


A Imitação da Rosa
A paz de um homem era, esquecido de sua mulher,
conversar com outro homem sobre o que saía nos jornais.

...ele que a recebera de um pai e de um padre,
e que não sabia o que fazer com essa moça (...)
que, inesperadamente, (...) se tornara super-humana.

...o devaneio enchia-a com o mesmo gosto que tinha em arrumar gavetas,
chegava a desarrumá-las para poder arrumá-las de novo.

Oh, nada demais, apenas acontecia que a beleza extrema incomodava.
E dar as rosas era quase tão bonito como as próprias rosas.

E também porque uma coisa bonita era para se dar ou para se receber,
não apenas para se ter. E, sobretudo, nunca para se "ser". (...)
A uma coisa bonita faltava o gesto de dar.


Feliz Aniversário
"Vim para não deixar de vir."

E, para adiantar o expediente, vestira a aniversariante logo depois do almoço.
(...) Sentara-a à mesa. E desde as duas horas a aniversariante estava
sentada à cabeceira da longa mesa vazia, tesa na sala silenciosa.

Parecia oca.
Cordélia olhava ausente para todos, sorria.
Oh o desprezo pela vida que falhava.
...e com aquela mudez que era sua última palavra.
Porque a verdade era um relance.

...aquele mesmo olhar firme e direto com que desde sempre
olhara os outros filhos, fazendo-os sempre desviar os olhos.
Amor de mãe era duro de suportar.

Era um instante que pedia para ser vivo.
Mas que era morto.


A Menor Mulher do Mundo
Naquela casa de adultos, essa menina fora até agora
o menor dos seres humanos. E, se isso era fonte das melhores carícias,
era também fonte deste primeiro medo do amor tirano.

E considerou a cruel necessidade de amar.
Considerou a marginalidade do nosso desejo de ser feliz.
Considerou a ferocidade com que queremos brincar.
E o número de vezes em que mataremos por amor.

...sabia que esse seria um domingo em que teria de disfarçar
de si mesma a ansiedade, o sonho, e milênios perdidos.

...há horas em que não se quer ter sentimentos.

...pois numa Natureza que errou uma vez já não se pode mais confiar.

...tinha no coração algo mais raro ainda,
assim como o segredo do próprio segredo.

...pois olhe, eu só lhe digo uma coisa: Deus sabe o que faz.


O Jantar
Sentou-se amplo e sólido.

Pega então no copo de vinho e bebe de olhos fechados,
em rumorosa ressurreição.


Preciosidade
Acordava antes de todos, pois para ir à escola teria que tomar
um ônibus e um bonde, o que lhe tomaria uma hora. O que lhe daria uma hora.
De devaneio agudo como um crime. O vento da manhã violentando a janela e
o rosto até que os lábios ficavam duros, gelados. Então ela sorria.
Como se sorrir fosse em si um objetivo.

Ela fazia mais sombra do que existia.
...como se ela quisesse inutilmente fazer parar de bater um coração.

...ela se concentrava ausente...
Fazia-se pois distraída e, conversando, evitava a conversa.

As casas dormiam nas portas fechadas.

A calçada era oca ou os sapatos eram ocos ou ela própria era oca.

Foi para lavatório. Onde, diante do grande silêncio dos ladrilhos, gritou aguda,
supersônica: Estou sozinha no mundo! Nunca ninguém vai me ajudar,
nunca ninguém vai me amar! Estou sozinha no mundo!

Ela era tão feia e preciosa. (...)
Até que, assim como uma pessoa engorda, ela deixou,
sem saber por que processo, de ser preciosa.


Os Laços de Família
...o riso saía pelos olhos.

A filha observava divertida. Ninguém mais pode te amar senão eu,
pensou a mulher rindo pelos olhos; e o peso da responsaibilidade
deu-lhe à boca um gosto de sangue.
Como se "mãe e filha" fosse vida e repugnância.
(...) Sua mãe lhe dóia. era isso.

Que coisa tinham esquecido de dizer uma à outra? e agora era tarde demais.

Porque sábado era seu, mas ele queria que sua mulher e seu filho
estivessem em casa enquanto ele tomava o seu sábado.

Sentira-se frustrado porque há muito não poderia viver senão com ela.
E ela conseguiatomar seus momentos - sozinha.


Começo de Uma Fortuna
...cada vez que acordava era como se precisasse
recuperar os dias anteriores.

Em pequeno brincavam com ele, jpgavam-no para o ar,
enchiam-no de beijos - e de repente ficavam "individuais" -
largavam-no, diziam gentilmente mas já intangíveis:
"agora acabou", e ele ficava todo vibrante de carícias,
com tantas gargalhadas ainda por dar.

A vida fora de casa era completamente outra.
Além da diferença de luz (...) havia a diferença do modo de ser.


Mistério em São Cristóvão
O rosto atrás da janela olhava.

...um alto, um gordo e um jovem, um gordo, um jovem e um alto,
desequilíbrio e união, os rostos sem palavras
embaixo de três máscaras que vacilavam independentes.


O Crime do Professor de Matemática
Sem os óculos, seus olhos piscaram claros,
quase jovens, infamiliares.

Mas, desde então, já começavas a ser todos os dias
um cachorro que se podia abandonar. Enquanto isso,
nossas brincadeiras tornavam-se perigosas de tanta compreensão.

Mas possuíste uma pessoa tão poderosa
que podia escolher: e então te abandonou.

Pois ainda não haviam inventado castigo
para os grandes crimes disfarçados
e para as profundas traições.

O Búfalo
...olhou em torno de si, rodeada pelas jaulas,
enjaulada pelas jaulas fechadas.

...desviou os olhos, doente, doente (...)
sem conseguir encontrar dentro de si o ponto pior
de sua doença, o ponto mais doente, o ponto de ódio,
ela que fora ao Jardim Zoológico para adoecer.

E, enquanto fugia, disse: "Deus, me ensine somente a odiar".
"Eu te odeio", disse ela para um homem cujo crime único era
o de não amá-la. "Eu te odeio", disse muito apressada.
Mas não sabia sequer como se fazia.

Mas onde, (...) onde aprender a odiar para não morrer de amor?

EU te amo, disse ela então com ódio para o homem
cujo grande crime impunível era o de não querê-la.
Eu te odeio, disse implorando amor ao búfalo.

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