quarta-feira, 24 de julho de 2002

Felicidade Clandestina



Onde anda Clarice em mim?

A minha felicidade de hoje é decididamente clandestina...

Portanto lembremos Clarice.

Trechos, já que a felicidade minha é um trecho...



(...) Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.



Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.



(...) Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.



(...) Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.



(...) Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter.



Felicidade Clandestina, Clarice Lispector

(Se quiser a Felicidade inteira, na clandestinidade)





Como é que alguém pode escrever assim, meu Deus!

Sinto uma inveja estranha. Por que não fui eu?

Às vezes finjo que não tenho Clarice, só para de repente ter o susto de tê-la.



...



E você, hein? Veja que não estou falando dela, é de você! Você.

O susto de não tê-la mais não é fingimento. É sofrimento.

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