quarta-feira, 8 de outubro de 2008

enquanto você pensava que eu não ligava pra nada

ela entra no banheiro e fecha a porta. eu aceito calada, como quem não liga. pra nada. escuto a água estalar o chão. gelada. não a água, eu. e imagino os detalhes sórdidos do banho quente que me exclui. ela se despe de brincos e anéis, e as roupas pelo piso frio fazem do espelho o paraíso. quente. não o paraíso, eu. mas não vejo espelho nenhum. e não preciso. escuto o corpo entre a água e o chão e o meu coração acelerado. escuto, acelerada, minha respiração pesada entre o ar do céu e o do inferno. hiberno no quarto vazio. e, de repente: silêncio.

ela desliga o chuveiro e se prepara para me torturar mais um pouco. quase sem som, e sem esforço. como quem não liga. pra nada. eu ouço e sinto. longos minutos de tampas e cheiros. e imagino o que já era lindo ao entrar, sair por aquela porta e me matar de deslumbre, entre o perfume e a visão. mas ainda não. há mais o tempo das cores, dos cílios e da boca. da boca. como louca acredito que a porta se desfez. massacrada de imaginação, espero. outra vez.

mas, pá! pela porta do quarto uma avalanche de mãe, tia e irmãs me invade o devaneio secreto. me acorda. me arrasa de concreto. derruba a água toda da casa na minha cabeça. gelada. vozes e rostos e o quarto cheio de realidade. e antes que eu me esqueça, qual é mesmo a minha idade? sorrio forçado como quem não liga pra nada. falo, falo, falo. ela sai do banheiro, desarrumada. e a graça se esvai pelo ralo.

eu, nem reparo. nem me abalo. nem ligo.
falo.

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