quarta-feira, 6 de novembro de 2002

Drummond

Também não posso deixar passar em branco o centenário de Drummond.

Principalmente porque Drummond não deixa nada em branco.



CarlosDrummonddeAndrade





Hoje estou... triste.





Deus Triste



Deus é triste.



Domingo descobri que Deus é triste

pela semana afora e além do tempo.



A solidão de Deus é incomparável.

Deus não está diante de Deus.

Está sempre em si mesmo e cobre tudo

tristinfinitamente.

A tristeza de Deus é como Deus: eterna.



Deus criou triste.

Outra fonte não tem a tristeza do homem.











Hoje sou... uma porta cerrada.





Cuidado



A porta cerrada

não abras.

Pode ser que encontres

o que não buscavas

nem esperavas.



Na escuridão

pode ser que esbarres

no casal em pé

tentando se amar

apressadamente.



Pode ser que a vela

que trazes na mão

te revele, trêmula,

tua escrava nova,

teu dono-marido.



Descuidosa, a porta

apenas cerrada

pode te contar

conto que não queres

saber.








Hoje... Sempre... vejo Clarice





Visão de Clarice Lispector



Clarice,

veio de um mistério, partiu para outro.



Ficamos sem saber a essência do mistério.

Ou o mistério não era essencial,

era Clarice viajando nele.



Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,

onde a palavra parece encontrar

sua razão de ser, e retratar o homem.



O que Clarice disse, o que Clarice

viveu por nós em forma de história

em forma de sonho de história

em forma de sonho de sonho de história

(no meio havia uma barata

ou um anjo?)

não sabemos repetir nem inventar.

São coisas, são jóias particulares de Clarice

que usamos de empréstimo, ela dona de tudo.



Clarice não foi um lugar-comum,

carteira de identidade, retrato.

De Chirico a pintou? Pois sim.



O mais puro retrato de Clarice

só se pode encontrá-lo atrás da nuvem

que o avião cortou, não se percebe mais.



De Clarice guardamos gestos. Gestos,

tentativas de Clarice sair de Clarice

para ser igual a nós todos

em cortesia, cuidados, providências.

Clarice não saiu, mesmo sorrindo.

Dentro dela

o que havia de salões, escadarias,

tetos fosforescentes, longas estepes,

zimbórios, pontes do Recife em bruma envoltas,

formava um país, o país onde Clarice

vivia, só e ardente, construindo fábulas.



Não podíamos reter Clarice em nosso chão

salpicado de compromissos. Os papéis,

os cumprimentos falavam em agora,

edições, possíveis coquetéis

à beira do abismo.

Levitando acima do abismo Clarice riscava

um sulco rubro e cinza no ar e fascinava.



Fascinava-nos, apenas.

Deixamos para compreendê-la mais tarde.

Mais tarde, um dia... saberemos amar Clarice.






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