domingo, 24 de fevereiro de 2008

Once
Part of me Has Died And won't return And part of me Wants to hide The part that's burned
Once, once Knew how to talk to you Once, once But not anymore
Hear the sirens call me home Hear the sirens call me home
Hear the sirens call me home Hear the sirens call me home
Part of me Has vied To watch it burn And the heart of me Has tried But look what it's become
Once, once I knew how to look for you Once, once But that was before
Once, once I would have laid down to died for you Once, once But not anymore
Hear the sirens call me home Hear the sirens call me home
Hear the sirens call me home Hear the sirens call me home
I'm scratching at the surface now And I'm trying hard to work it out
So much has gone misunderstood This mystery only leads to doubt And I didn't understand
When you reached out to take my hand And if you have something to say You'd better say it now
Cause this is what you've waited for Your chance to even up the score
And as these shadows fall on me now I will somehow
Cause I'm picking up a message Lord And I'm closer than I've ever been before
So if you have something to say Say it to me now Say it to me now Say it to me now
I don't know you But I want you All the more for that Words fall through me
And always fool me And I can't react
And games that never amount To more than they're meant Will play themselves out
Take this sinking boat and point it home We've still got time
Raise your hopeful voice you have a choice You've made it now
Falling slowly, eyes that know me And I can't go back
Moods that take me and erase me And I'm painted black
You have suffered enough And warred with yourself It's time that you won
Take this sinking boat and point it home We've still got time
Raise your hopeful voice you had a choice You've made it now
Falling slowly sing your melody I'll sing along

sábado, 23 de fevereiro de 2008

No meio do meu caminho

No meio do meu caminho tinha um pato
tinha um pato no meio do meu caminho
tinha um pato
no meio do meu caminho tinha um pato.

Nunca me esquecerei desse acontecimento.
Nunca me esquecerei que no meio do meu caminho
tinha um pato
tinha um pato no meio do meu caminho
no meio do meu caminho tinha uma pato.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Oh, porque metade de mim é amor e a outra metade também

Que a mulher que eu amo seja sempre amada, mesmo que distante.
Porque metade de mim é partida e a outra metade é saudade.
Porque metade de mim é o que eu ouço, mas a outra metade é o que calo.
Que essa minha vontade de ir embora se transforme na calma e na paz que eu mereço.
Que essa tensão que me corrói por dentro seja um dia recompensada.
Que o medo da solidão se afaste, que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.
Que não seja preciso mais do que uma simples alegria para me fazer aquietar o espírito.
E que o teu silêncio me fale cada vez mais.
Porque metade de mim é abrigo, mas a outra metade é cansaço.
Porque metade de mim é o que eu grito, mas a outra metade é silêncio.
(O.M.)

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Renúncia

Fidel e eu.

domingo, 17 de fevereiro de 2008


"Comadre Joana já saiu ilesa de muito inferno, muita tempestade.
Precisa mais que uma calamidade pra derrubar aquela fortaleza.
Mas desta vez eu acho que não agüenta."
.
.
.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

um primeiro fio de sangue negro

Mas era primavera. Até o leão lambeu a testa glabra da leoa. Os dois animais louros. A mulher desviou os olhos da jaula, onde só o cheiro quente lembrava a carnificina que ela viera buscar no Jardim Zoológico. Depois o leão passou enjubado e tranqüilo, e a leoa lentamente reconstituiu sobre as patas estendidas a cabeça de uma esfinge. "Mas isso é amor, é amor de novo", revoltou-se a mulher tentando encontrar-se com o próprio ódio mas era primavera e os dois leões se tinham amado. Com os punhos nos bolsos do casaco, olhou em torno de si, rodeada pelas jaulas, enjaulada pelas jaulas fechadas. Continuou a andar. Os olhos estavam tão concentrados na procura que sua vista às vezes se escurecia num sono, e então ela se refazia como na frescura de uma cova.

Mas a girafa era uma virgem de tranças recém-cortadas. Com a tola inocência do que é grande e leve e sem culpa. A mulher do casaco marrom desviou os olhos, doente, doente. Sem conseguir - diante da aérea girafa pousada, diante daquele silencioso pássaro sem asas-, sem conseguir encontrar dentro de si o ponto pior de sua doença, o ponto mais doente, o ponto de ódio, ela que fora ao Jardim Zoológico para adoecer. Mas não diante da girafa que mais era paisagem que um ente. Não diante daquela carne que se distraía em altura e distância, a girafa quase verde. Procurou outros animais, tentava aprender com eles a odiar. O hipopótamo, o hipopótamo úmido. O rolo roliço de carne, carne redonda e muda esperando outra carne roliça e muda. Não. Pois havia tal amor humilde em se manter apenas carne, tal doce martírio em não saber pensar.



Mas era primavera, e, apertando o punho no bolso do casaco, ela mataria aqueles macacos em levitação pela jaula, macacos felizes como ervas, macacos se entrepulando suaves, a macaca com olhar resignado de amor, e outra macaca dando de mamar. Ela os mataria com quinze secas balas: os dentes da mulher se apertaram até o maxilar doer. A nudez dos macacos. O mundo que não via perigo em ser nu. Ela mataria a nudez dos macacos. Um macaco também a olhou segurando as grades, os braços descarnados abertos em crucifixo, o peito pelado exposto sem orgulho. Mas não era no peito que ela mataria, era entre os olhos do macaco que ela mataria, era entre aqueles olhos que a olhavam sem pestanejar. De repente a mulher desviou o rosto: é que os olhos do macaco tinham um véu branco gelatinoso cobrindo a pupila, nos olhos a doçura da doença, era um macaco velho - a mulher desviou o rosto, trancando entre os dentes um sentimento que ela não viera buscar, apressou os passos, ainda voltou a cabeça espantada para o macaco de braços abertos: ele continuava a olhar para a frente: "Oh não, não isso", pensou. E enquanto fugia, disse: "Deus, me ensine somente a odiar."

"Eu te odeio", disse ela para um homem cujo crime único era o de não amá-la. "Eu te odeio", disse muito apressada. Mas não sabia sequer como se fazia. Como cavar na terra até encontrar a água negra, como abrir passagem na terra dura e chegar jamais a si mesma? Andou pelo Jardim Zoológico entre mães e crianças. Mas o elefante suportava o próprio peso. Aquele elefante inteiro a quem fora dado com uma simples pata esmagar. Mas que não esmagava. Aquela potência que no entanto se deixaria docilmente conduzir a um circo, elefante de crianças. E os olhos, numa bondade de velho, presos dentro da grande carne herdada. O elefante oriental. Também a primavera oriental, e tudo nascendo, tudo escorrendo pelo riacho.

A mulher então experimentou o camelo. O camelo em trapos, corcunda, mastigando a si próprio, entregue ao processo de conhecer a comida. Ela se sentiu fraca e cansada, há dois dias mal comia. Os grandes cílios empoeirados do camelo sobre os olhos que se tinham dedicado à paciência de um artesanato interno. A paciência, a paciência, a paciência, só isso ela encontrava na primavera ao vento. Lágrimas encheram os olhos da mulher, lágrimas que não correram, presas dentro da paciência de sua carne herdada. Somente o cheiro da poeira do camelo vinha de encontro ao que ela viera: ao ódio seco, não a lágrimas. Aproximou-se das barras do cercado, aspirou o pó daquele tapete velho sangue cinzento circulava, procurou a tepidez impura, o prazer percorreu suas costas até o mal-estar, mas não ainda o mal-estar que ela viera buscar. No estômago contraiu-se em cólica de fome a vontade de matar. Mas não o camelo de estopa. "Oh, Deus, quem será meu par neste mundo?"

Então foi sozinha ter a sua violência. No pequeno parque de diversões do Jardim Zoológico esperou meditativa na fila de namorados pela sua vez de se sentar no banco da montanha-russa.

E ali estava agora sentada, quieta no casaco marrom. O banco ainda parado, a maquinaria da montanha-russa ainda parada. Separada de todos no seu banco parecia estar sentada numa igreja. Os olhos baixos viam o chão entre os trilhos. O chão onde simplesmente por amor - amor, amor, não o amor! -, onde por puro amor nasciam entre os trilhos ervas de um verde leve tão tonto que a fez desviar os olhos em suplício de tentação. A brisa arrepiou-lhe os cabelos da nuca, ela estremeceu recusando, em tentação recusando, sempre tão mais fácil amar.

Mas de repente foi aquele vôo de vísceras, aquela parada de um coração que se surpreende no ar, aquele espanto, a fúria vitoriosa com que o banco a precipitava do nada e imediatamente a soerguia como uma boneca de saia levantada, o profundo ressentimento com que ela se tornou mecânica, o corpo automaticamente alegre - o grito das namoradas! -, seu olhar ferido pela grande surpresa, a ofensa, "faziam dela o que queriam", a grande ofensa - o grito das namoradas! -, a enorme perplexidade de estar espasmodicamente brincando faziam dela o que queriam, de repente sua candura exposta. Quantos minutos? Os minutos a um grito prolongado de trem na curva, e a alegria de um novo mergulho no ar insultando-a com um pontapé, ela dançando descompassada ao vento, dançando apressada, quisesse ou não quisesse o corpo sacudia-a como o de quem ri, aquela sensação de morte às gargalhadas, morte sem aviso de quem não rasgou antes os papéis da gaveta, não a morte dos outros, a sua, sempre a sua. Ela que poderia ter aproveitado o grito dos outros para dar seu urro de lamento, ela se esqueceu, ela só teve espanto.

E agora este silêncio também é súbito. Estavam de volta à terra, a maquinaria de novo inteiramente parada.

Pálida, jogada fora de uma igreja, olhou a terra imóvel de onde partira e onde de novo fora entregue. Ajeitou as saias com recato. Não olhava para ninguém. Contrita como no dia em que no meio de todo o mundo tudo o que tinha na bolsa caíra no chão e tudo o que tivera valor enquanto secreto na bolsa, ao ser exposto na poeira da rua, revelara a mesquinharia de uma vida íntima de precauções: pó-de-arroz, recibo, caneta-tinteiro, ela recolhendo do meio-fio os andaimes de sua vida. Levantou-se do banco estonteada como se tivesse se sacudindo de um atropelamento. Embora ninguém prestasse atenção, alisou de novo a saia, fazia o possível para que não percebessem que estava fraca e difamada, protegia com altivez os ossos quebrados. Mas o céu lhe rodava no estômago vazio; a terra, que subia e descia a seus olhos, ficava por momentos distante, a terra que é sempre tão difícil. Por um momento a mulher quis, num cansaço de choro mudo, estender a mão para a terra difícil: sua mão se estendeu como a de um aleijado pedindo. Mas como se tivesse engolido o vácuo, o coração surpreendido.

Só isso? Só isso. Da violência, só isso.

Recomeçou a andar em direção aos bichos. O quebranto da montanha-russa deixara-a suave. Não conseguiu ir muito adiante: teve que apoiar a testa na grade de uma jaula, exausta, a respiração curta e leve. De dentro da jaula o quati olhou-a. Ela o olhou. Nenhuma palavra trocada. Nunca poderia odiar o quati, que no silêncio de um corpo indagante a olhava. Perturbada, desviou os olhos da ingenuidade do quati. O quati curioso lhe fazendo uma pergunta como uma criança pergunta. E ela desviando os olhos, escondendo dele a sua missão mortal. A testa estava tão encostada às grades que por um instante lhe pareceu que ela estava enjaulada e que um quati livre a examinava.

A jaula era sempre do lado onde ela estava: deu um gemido que pareceu vir da sola dos pés. Depois outro gemido.

Então, nascida do ventre, de novo subiu, implorante, em onda vagarosa a vontade de matar - seus olhos molharam-se gratos e negros numa quase felicidade, não era o ódio ainda, por enquanto apenas vontade atormentada de ódio como um desejo, à promessa do desabrochamento cruel, um tormento como se amor, a vontade de ódio se prometendo sagrado sangue e triunfo, a fêmea rejeitada espiritualizara-se na grande esperança. Mas onde, onde encontrar o animal que lhe ensinasse a ler o seu próprio ódio? O ódio que lhe pertencia por direito mas que em dor ela não alcançava? Onde aprender a odiar para não morrer de amor? E com quem? O mundo de primavera, o mundo das bestas que na primavera se cristianizam em patas que arranham mas não dói... oh não mais esse mundo! não mais esse perfume, não esse arfar cansado, não mais esse perdão em tudo o que um dia vai morrer como se fora para dar-se. Nunca o perdão, se aquela mulher perdoasse mais uma vez, uma só vez que fosse, sua vida estaria perdida - deu um gemido áspero e curto, o quati sobressaltou-se -, enjaulada olhou em torno de si e como não era pessoa em quem prestassem atenção, encolheu-se como uma velha assassina solitária, uma criança passou correndo sem vê-la.

Recomeçou então a andar, agora apequenada, dura, os punhos de novo fortificados nos bolsos, a assassina incógnita, e tudo estava preso no seu peito. No peito que só sabia resignar-se, que só sabia suportar, só sabia pedir perdão, só sabia perdoar, que só aprendera a ter a doçura da infelicidade, e só aprendera a amar, a amar, a amar. Imaginar que talvez nunca experimentasse o ódio de que sempre fora feito o seu perdão, fez seu coração gemer sem pudor, ela começou a andar tão depressa que parecia ter encontrado um súbito destino. Quase corria, os sapatos a desequilibravam, e davam-lhe uma fragilidade de corpo que de novo a reduzia a fêmea de presa, os passos tomaram mecanicamente o desespero implorante dos delicados, ela que não passava de uma delicada. Mas pudesse tirar os sapatos, poderia evitar a alegria de andar descalça? Como não amar o chão em que se pisa? Gemeu de novo, parou diante das barras de um cercado, encostou o rosto quente no enferrujado frio do ferro. De olhos profundamente fechados procurava enterrar a cara entre a dureza das grades, a cara tentava uma passagem impossível entre barras estreitas, assim como antes vira o macaco recém-nascido buscar na cegueira da fome o peito da macaca. Um conforto passageiro veio-lhe do modo como as grades pareceram odiá-la opondo-lhe a resistência de um ferro gelado.

Abriu os olhos devagar. Os olhos vindos de sua própria escuridão nada viram na desmaiada luz da tarde. Ficou respirando. Aos poucos recomeçou a enxergar, aos poucos as formas foram se solidificando, ela cansada, esmagada pela doçura de um cansaço. Sua cabeça ergueu-se em indagação para as árvores de brotos nascendo, os olhos viram as pequenas nuvens brancas. Sem esperança, ouviu a leveza de um riacho. Abaixou de novo a cabeça e ficou olhando o búfalo ao longe. Dentro de um casaco marrom, respirando sem interesse, ninguém interessado nela, ela não interessada em ninguém.

Certa paz enfim. A brisa mexendo nos cabelos da testa como nos de pessoa recém-morta, de testa ainda suada. Olhando com isenção aquele grande terreno seco rodeado de grades altas, o terreno do búfalo. O búfalo negro estava imóvel no fundo do terreno. Depois passeou ao longe com os quadris estreitos, os quadris concentrados. O pescoço mais grosso que as ilhargas contraídas. Visto de frente a grande cabeça mais larga que o resto do corpo, como uma cabeça decepada. E na cabeça os cornos. De longe ele passeava devagar com seu torso. Era um búfalo negro. Tão preto que, a distância, a cara não tinha traços. Sobre o negror a alvura erguida dos cornos.

A mulher talvez fosse embora mas o silêncio era bom no cair da tarde.

E no silêncio do cercado, os passos vagarosos, a poeira seca sob os cascos secos. De longe, no seu calmo passeio, o búfalo negro olhou-a um instante. No instante seguinte, a mulher de novo viu apenas o duro músculo do corpo. Talvez não a tivesse olhado. Não podia saber, porque nas trevas da cabeça ela só distinguia os contornos. Mas de novo ele pareceu tê-la visto ou sentido.

A mulher aprumou um pouco a cabeça, recuou-a ligeiramente em desconfiança. Mantendo o corpo imóvel, a cabeça recuada, ela esperou.

E mais uma vez o búfalo pareceu notá-la.

Como se ela não tivesse suportado sentir o que sentira, desviou subitamente o rosto e olhou uma árvore. Seu coração não bateu no peito, o coração batia oco entre o estômago e os intestinos.

O búfalo deu outra volta lenta. A poeira. A mulher apertou os dentes, o rosto todo doeu um pouco.

O búfalo como dorso preto. No entardecer luminoso era um corpo enegrecido de tranqüila raiva, a mulher suspirou devagar. Uma coisa branca espalhara-se dentro dela, branca como papel, fraca como papel, intensa como uma brancura. A morte zumbia nos seus ouvidos. Novos passos do búfalo trouxeram-na a si mesma e, em novo longo suspiro, ela voltou à tona. Não sabia onde estivera. Estava de pé, muito débil, emergida naquela coisa branca e remota onde estivera.

E de onde olhou de novo o búfalo.

O búfalo agora maior. O búfalo negro. Ah, disse de repente com uma dor. O búfalo de costas para ela, imóvel. O rosto esbranquiçado da mulher não sabia como chamá-lo. Ah!, disse provocando-o. Ah!, disse ela. Seu rosto estava coberto de mortal brancura, o rosto subitamente emagrecido era de pureza e veneração. Ah!, instigou-o com os dentes apertados. Mas de costas para ela, o búfalo inteiramente imóvel.

Apanhou uma pedra no chão e jogou para dentro do cercado. A imobilidade do dorso mais negra ainda se aquietou: a pedra rolou inútil.

Ah! disse sacudindo as barras. Aquela coisa branca se espalhava dentro dela, viscosa como uma saliva. O búfalo de costas.

Ah!, disse. Mas dessa vez porque dentro dela escorria enfim um primeiro fio de sangue negro.

O primeiro instante foi de dor. Como se para que escorresse este sangue se tivesse contraído o mundo. Ficou parada, ouvindo pingar como uma grota aquele primeiro óleo amargo, a fêmea desprezada. Sua força ainda estava presa entre barras, mas uma coisa incompreensível e quente, enfim incompreensível, acontecia, uma coisa como uma alegria sentida na boca. Então o búfalo se voltou para ela.

O búfalo voltou-se, imobilizou-se, e, à distância, encarou-a.

Eu te amo, disse ela então com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse implorando amor ao búfalo.

Enfim provocado, o grande búfalo aproximou-se sem pressa.

Ele se aproximava, a poeira erguia-se. A mulher esperou de braços pendidos ao longo do casaco. Devagar ele se aproximava. Ela não recuou um só passo. Até que ele chegou às grades e ali parou. Lá estavam o búfalo e a mulher, frente a frente. Ela não olhou o cara, nem a boca, nem os cornos. Olhou seus olhos.

E os olhos do búfalo, os olhos olharam seus olhos. E uma palidez tão funda foi trocada que a mulher se entorpeceu dormente. De pé, em sono profundo. Olhos pequenos e vermelhos a olhavam. Os olhos do búfalo. A mulher tonteou surpreendida, lentamente meneava a cabeça. O búfalo calmo. Lentamente a mulher meneava a cabeça, espantada com o ódio com que o búfalo, tranqüilo de ódio, a olhava. Quase inocentada, meneando uma cabeça incrédula, a boca entreaberta. Inocente, curiosa, entrando cada vez mais fundo dentro daqueles olhos que sem pressa a fitavam, ingênua, num suspiro de sono, sem querer nem poder fugir, presa ao mútuo assassinato. Presa como se sua mão se tivesse grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara. Presa, enquanto escorregava enfeitiçada ao longo das grades. Em tão lenta vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um búfalo.


O Búfalo, Clarice Lispector


terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

medo

por que apago o que escrevo?
para evitar ao que não me atrevo?
para fugir do apego?
ou porque cometi um erro?


...


minúscula












...




intervalo

é como um botão que a gente simplesmente desliga
quem tem, aproveita
quem não tem, se arrebenta

é como uma bateria que a gente deixa descarregar
quem consegue, recarrega
quem não consegue, sossega

é como uma ampulheta que a gente vira e revira
quem tem companhia, ri enquanto espera
quem não tem, se aterra

é como uma caixa de bombons que acaba
quem consegue, logo compra outra
quem não consegue, poupa

é como a água que seca sob o sol
quem tem sede, bebe o que escorre
quem não tem, morre

é como restos que a gente deixa pra trás
quem consegue, dá as costas e esquece
quem não consegue, padece

é como quando a gente é roubada
quem tem colo, ignora
quem não tem, chora

é como oferecer a outra face
quem consegue, reza
quem não consegue, despreza

é como fazer poesia ou amor
quem tem palavras, fala
quem não tem, se cala.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

buraco

eu lembro que só podia ouvir a minha própria respiração.
sentia os carinhos
as flores
os cheiros.
via através das pálpebras
as luzes
as gentes
os choros.
mas só podia escutar a minha respiração.
alta, pausada, tranqüila.
era o som que eu tinha da despedida de mim mesma.
a respiração alta e tranqüila do mergulho profundo.

colocaram a tampa.
depois de um arrepio,
passei a ouvir também os passos.
muitos, compassados e lentos.
quase a me ninar
num balanço sem volta.

fim dos passos.
silêncio.
um longo silêncio inacabado.
e a chuva de terra.
o som da chuva de terra
aumentando em tempestade
e silenciando em si todos os outros sons.

súbito, o nada.
pausa.
vácuo.
limbo.
breu.

aqui, nem mesmo a lembrança do que acabei de contar.
nem mesmo a lembrança de haver lembranças.

nada.
pausa.
vácuo.
limbo.
breu.
breu.
breu.
eu.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

não, ela não deixou bilhete mesmo.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

remédio

ela não deixou bilhete.
mas queria ir faz tempo,
todo mundo sabia.
tentaram fazê-la esquecer,
disfarçar a idéia,
ocupar-lhe o pensamento,
os dias, o tempo.
mas quando a gente quer ir,
não tem enganação que dê jeito,
não tem argumento,
não tem negociação.
ela não deixou bilhete
porque estava atrasada demais.
foi recebida ao som de aleluia.
a reserva era para anos atrás.
e, enfim, ela viu com olhos brilhantes:
não era pior, não.
devia ter ido antes.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

o 7 bíblico

É a soma de 4 (número da totalidade) + 3 (número da unidade e da Trindade).
Por isso é o número perfeito, indica o máximo da perfeição;

indica séries completas como no Apocalipse: 7 Cartas, 7 Selos, 7 cabeças;
o Cordeiro imolado recebe 7 dons;
o sábado é o sétimo dia;
Deus fez a Criação em 7 dias;
cada sétimo ano é sabático (descanso para a terra e libertação dos oprimidos);
e depois de 7 vezes, 7 anos, vem o Jubileu;
é a duração limitada das perseguições;
é o tempo controlado por Deus.

Não se deve perdoar 7 vezes, mas 70 vezes 7.
(Mt 18,22)

(mas tem coisa que dói, viu...)

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

um pessimismo rápido e passageiro

dormi
dormi
dormi
escrevi
comi
saí
li o passado
chorei adoidado
e comecei a acreditar que a gente só tem mesmo uma chance.
se passou, passou.
motorista, passageiro, cobrador.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

...

Não, talvez não seja isso. As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito. Ou, pelo menos, não era apenas isso. Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só; meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias. E nem todas posso contar - uma palavra mais verdadeira poderia de eco em eco fazer desabar pelo despenhadeiro as minhas altas geleiras.

de Os desastres de Sofia, Clarice Lispector

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

segunda-feira de carnaval

o bate-estaca
que era fora
agora é dentro


Perdi vinte em vinte e nove amizades
Por conta de uma pedra em minhas mãos
Me embriaguei morrendo vinte e nove vezes
Estou aprendendo a viver sem você
Já que você não me quer mais
Passei vinte e nove meses no navio
E vinte e nove dias na prisão
E aos vinte e nove, com retorno de Saturno
Decidi começar a viver
Quando você deixou de me amar
Aprendi a perdoar
E a pedir perdão
E vinte e nove anjos me saudaram
E tive vinte e nove amigos outra vez

Vinte e Nove, Renato Russo

domingo, 3 de fevereiro de 2008

o sono da manhã

a noite em claro no carnaval
é quase uma obrigação
ser feliz
não

sábado, 2 de fevereiro de 2008

dois de fevereiro

- ô, janaína, cuida dessa menina,
disse a mãe largando a mãozinha da pequena,
antes de se jogar das pedras ao mar, para sempre.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

carnavão

a fantasia de amar é vã, meu irmão
é um engano
um brinquedo humano
uma fabricação

a fantasia de amar é um não
é uma tentação que mata
uma barata
uma migalha de pão

a gente costura a fantasia à mão
rasga o dedo, dá o sangue
pinta circo, folclore, bang-bang
prega cada botão

no fim do desfile, é fantasia no chão
é carregar um rei momo no colo
a bateria estourando os miolos
a pior pontuação

a fantasia de amar não tem perdão
são anos perdidos
carnavais esquecidos
samba triste, e solidão

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

domingo, 27 de janeiro de 2008

lacuna

era um espaço vazio
preenchido de violência
as bordas se contraíam
portanto lacuna

sábado, 26 de janeiro de 2008

Heroes

Se eu pudesse voar, seria pros teus braços
Se eu pudesse parar o tempo, seria nos teus abraços

Se eu pudesse ler pensamentos, faria as tuas vontades
Se eu pudesse pintar o futuro, teria possibilidades

Se eu pudesse atravessar paredes, te surpreenderia com flores
Se eu pudesse curar, te daria uma vida sem dores

Se eu tivesse uma força absurda, te salvaria de todo perigo
Se eu fosse imortal, queria te ter comigo

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

o jogo do livro

"Atrás da poltrona em frente, as fagulhas sobem pela chaminé,
sugadas pelo vento, que agora está mais forte do que antes."
de Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas


qual é o jogo?
1 - pegue o livro mais próximo
2 - abra na página 161
3 - procure a quinta frase completa

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

a flor errada

romeu
rodela
romeu
rodela
romeu
rodela
romeu
rodela
romeu
(pausa)
rodela!

droga.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Há um jeito de ser bom de novo

"Por você, faria isso mil vezes!"
o caçador de pipas

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Insônia

Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.

Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver!

Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro —
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.

Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais

Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.
O que falhei deveras não tem esperança nenhuma


Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?

Fragmentos de A Noite Terrível, de Álvaro de Campos (FP)

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Lenda

Light up the darkness.

domingo, 20 de janeiro de 2008

cura
será que essa palavra existe em todas as línguas?
ou é como saudade?
que língua será que eu falo?
será que eu tenho cura?

sábado, 19 de janeiro de 2008

das razões para se viver

- Tia Chuli, quandu éu fié molá no Basil,
pódu dulmí na sua cássa seti dias siguidus?
- Sim.
(abraço de Felícia)
- Ai, tia Chuli, eu ti ámu.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

O Natimorto
- Não existe graça na ausência.
- Será?
...

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Simone, Jean-Paul, eu e meu amor
Prometeram contar "tudo" um ao outro, nos mínimos detalhes. Transformar a vida em narrativa era talvez seu prazer mais voluptuoso. "Para o acontecimento mais banal virar uma aventura, é preciso (...) começar a contá-lo." Era impossível dizer o que era mais satisfatório: a sensação voyeurística de ouvir sobre a vida um do outro ou o conforto gostoso de narrar a própria.
E sua paixão por compartilhar os mínimos detalhes de seu dia-a-dia - o cheiro da chuva, a cor dos faróis no escuro, uma conversa divertida que entreouviram num trem - era francamente cativante.
Tête-à-Tête, Hazel Rowley

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

um discurso sobre o inevitável acontecimento

A data foi marcada, senhores. Alguém há de me trazer os detalhes, os horrores. Milhares de pequenas mortes, de talheres, e sortes. As flores, as cores, o altar e os odores. Alguém há de me esfaquear as lembranças. Há de haver danças, camarões e amigos antigos. Milhões de seguranças e nenhum perigo. As ameaças foram guardadas ou podem nunca ter existido. Pode ser um castigo. Pode nunca ter sido. Alguém há de me chamar a atenção. Mas, não, que não me façam isso. É um pequeno capricho que quero levar. Alguma informação há de chegar, e alguma descrença, alguma questão. Mas não me perguntem o que não sei responder. Não me doam o que já não deve doer. Saberemos, se algo se houver de saber.

Há noite, mas há de amanhecer. Todo dia.

...

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

duo
The only real voyage of discovery
consists not in seeking new landscapes,
but in having new eyes
Marcel Proust
For one human being to love another;
that is perhaps the most difficult of all our tasks,
the ultimate, the last test and proof,
the work for which all other work is but preparation.
Rainer Maria Rilke

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

o alienígena

está dentro de mim
e não sei como tirá-lo
o nome pode ser outro
mas não quero chamá-lo

quero matá-lo
mas ele não morre

because I couldn't save the cheerleader

I've lost

domingo, 13 de janeiro de 2008

questions

sábado, 12 de janeiro de 2008

o oito deitado

por que é que a gente registra a data da dor?
pra ela não passar?
ou porque já passou?

por que é que a gente registra a dor?
pra ver se ela passa?
ou porque nada passou (a gente, a data, a dor, o registro...) ?

por que é que a gente insiste em registrar?
porque é amor?
ou é a-dor(-no) d'a-mor-te amo-r?

Nada do que foi será
De novo do jeito que já foi um dia
Tudo passa, tudo sempre passará
A vida vem em ondas
Como um mar
Num indo e vindo infinito
Tudo que se vê não é
Igual ao que a gente viu há um segundo
Tudo muda o tempo todo no mundo
Não adianta fugir nem mentir pra si mesmo
Agora
Há tanta vida lá fora
E aqui dentro sempre
Como uma onda no mar
Lulu Santos

OU NÃO.

sábado, 29 de dezembro de 2007

Simples

E como se a gente, simplesmente, já não pensasse o suficiente sobre tudo, o pensamento quer se expor. Só que tudo já foi dito, então vira uma coisa que não serve mais pra nada. A não ser para aliviar a cabeça do pensante. E alguém escreve, e alguém lê, ou não, e não importa. É que é preciso tirar isso de dentro de cabeça. Já dizia Raquel, a de Queiroz, eu nem gosto de escrever, mas preciso tirar essa coisa da minha cabeça. Fica doendo, querendo sair.

Desta vez eu acho que não vou saber dizer o que é. Mas tem tamanho e forma porque eu sinto alojado no cérebro. Quer sair, mas eu não sei. É mais de uma coisa. Eu as sei, mas... Vou ficar aqui falando falando e não vou conseguir dizer nada. Tempo perdido. Puro.

São umas coisas misturadas que não querem ficar lá dentro. Nem eu quero que fiquem, me atazanando. Mas faz o quê? Tem um pouco de querer saber se naquele dia foi legal, se eu estive lá passeando no dia seguinte, se vai tocar de novo aquele tango. Tem um pouco do que aquele cara contou, da pergunta, da resposta estranha, da dúvida. Tem um pouco também daquela novidade na foto que passamos na tv. Um rosto sem história. E tem ainda dessa lembrança, dessa criança, que eu nem sabia que tinha idade pra lembrar de ninguém. Mas, tia... se você disser que EU estou aqui, pode ajudar, cê não acha? Ah, e tem essa sensação do tempo, que passa e fim.

(Continua...)

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

o salto
(antonio prata)

A gente não tem como saber se vai dar certo. Talvez, lá adiante, haja uma mesa num restaurante, onde você mexerá o suco com o canudo, enquanto eu quebro uns palitos sobre o prato -- pequenas atividades às quais nos dedicaremos com inútil afinco, adiando o momento de dizer o que deve ser dito. Talvez, lá adiante: mas entre o silêncio que pode estar nos esperando então e o presente -- você acabou de sair da minha casa, seu cheiro ainda surge vez ou outra pelo quarto –, quem sabe não seremos felizes? Entre a concretude do beijo de cinco minutos atrás e a premonição do canudo girando no copo pode caber uma vida inteira. Ou duas.

Passos improvisados de tango e risadas, no corredor do meu apartamento. Uma festa cheia de amigos queridos, celebrando alguma coisa que não saberemos direito o que é, mas que deve ser celebrada. Abraços, borrachudos, a primeira visão de seu necessaire (para que tanto creme, meu Deus?!), respirações ofegantes, camarões, cafunés, banhos de mar – você me agarrando com as pernas e tapando o nariz, enquanto subimos e descemos com as ondas -- mãos dadas no cinema, uma poltrona verde e gorda comprada num antiquário, um tatu bola na grama de um sítio, algumas cidades domesticadas sob nossos pés, postais pregados com tachinhas no mural da cozinha e garrafas vazias num canto da área de serviço. Então, numa manhã, enquanto leio o jornal, te verei escovando os dentes e andando pela casa, dessa maneira aplicada e displicente que você tem de escovar os dentes e andar ao mesmo tempo e saberei, com a grandiosa certeza que surge das pequenas descobertas, que sou feliz.

Talvez, céus nublados e pancadas esparsas nos esperem mais adiante. Silêncios onde deveria haver palavras, palavras onde poderia haver carinho, batidas de frente, gritos até. Depois faremos as pazes. Ou não?

Tudo que sabemos agora é que eu te quero, você me quer e temos todo o tempo e o espaço diante de nossos narizes para fazer disso o melhor que pudermos. Se tivermos cuidado e sorte – sobretudo, talvez, sorte -- quem sabe, dê certo? Não é fácil. Tampouco impossível. E se existe essa centelha quase palpável, essa esperança intensa que chamamos de amor, então não há nada mais sensato a fazer do que soltarmos as mãos dos trapézios, perdermos a frágil segurança de nossas solidões e nos enlaçarmos em pleno ar. Talvez nos esborrachemos. Talvez saiamos voando. Não temos como saber se vai dar certo -- o verdadeiro encontro só se dá ao tirarmos os pés do chão --, mas a vida não tem nenhum sentido se não for para dar o salto.

domingo, 23 de dezembro de 2007

Carta para o Papai-Noel
ou Um bilhete colocado em silêncio por baixo da porta do quarto azul

Neste natal, o primeiro sem presente, eu quero lhe contar o que há em mim de contente.
Eu sou criança, por isso ainda acredito em você.
Não, não é isso. Isso foi só um adendo.
Como eu ia dizendo, bem...
Também pode ser que você já saiba.
Pode ser até que não caiba, mas vou lhe dizer mesmo assim.

Eu não fui uma menina ruim. Fui legal durante o ano. Me comportei.
Fui melhor do que antes. E aí é que estão as coisas importantes: eu mudei.
Você sabe, eu já vinha mudando. Mas quero lhe contar que funcionou, que agora tô aproveitando.
E você me ajudou. Assim... porque se a gente não é bom, o Papai-Noel não vem.
E eu sempre quis que você viesse. Mesmo de fininho, do jeito que acontece...

Hoje eu tô vendo certinho, como o seu caminho me guiou.
Seu carinho me ensinou a ser mais branda.
Aprendi que não importa quem comanda, contanto que seja em paz.
Ninguém precisa mandar demais. No final o objetivo é o mesmo, e a gente já sabia:
felicidade todo dia e no ano que vai chegar.
Ai, chega de devagar.
Mas devagar a gente chega e era isso que eu queria contar.

É um pouco triste quando a gente desiste. De acreditar.
Quando a gente se dá conta de que o conto de fada, com a bela amada, termina, assim, sem segunda chance.
Prepara a gente pra um outro romance, mesmo se a gente quisesse que fosse natal todo dia.
Mesmo se a gente quisesse aquela alegria, aquela, que só o Noel traz.
E quando a gente descobre, a fumaça cobre a chaminé. E vem a fase do tantofaz.
Você não acha que é crueldade, que é coisa das bruxas más,
a gente, nessa idade, ser deixada pra trás?? Ter de seguir sozinha, sem colo, sem naninha?
Você não acha, Papai-Noel? Que a nossa vidinha gostosa devia estar sempre lá?

Tá bom, não precisa explicar. Eu já compreendi.
E não quero falar de coisa triste, não tem nada triste aqui.
Comecei contente, lembra? E nem é um jogo, não. É de coração.
Não sei se fiz bem essa emenda, mas, se fosse uma canção...
seria um dia, então.
25 de dezembro, não.
1º de julho.

Bom, eu queria dizer que já joguei fora o entulho, pra você poder entrar.
Mesmo sabendo que esse ano cê não vem. E que talvez nem venha mais, pra variar.
É que eu já sei tudo sobre você e você já sabe tudo de mim,
e parece que a vida é assim: a gente se desinteressa.
Pelo menos não tenho mais pressa. E essa eu devo a você. À sua paciência.
Nem sei se a essência é o natal, o amor, o invisível.
Mas o que me sobra é real: seu efeito em mim foi in-crível.
(Embora eu creia, ainda, em você.)

Tenho vivido a história ao contrário. Quero contar isso pra terminar.
Tenho estado em seu lugar, não é hilário? Quem poderia imaginar?
Não vou tentar descrever situações, pormenorizando os detalhes.
Mas sei que você sabe, aos milhares, o que eu devo estar tentando dizer.
Ficamos assim, por nos entender, inteindeindo.

Caio da chaminé todo dia quase, está doendo pensar que você já caiu tanto.
Mas volto, sem pranto, ao contente. Porque é caindo que se aprende.
(Se arrepende. Se reacende. Se rende. Se vende. Se ofende. Se defende. Depende.)

Estou feliz, embora sem presente.
Com cada cicatriz, com cada semente.

Obrigada, Papai-Noel. Eu só queria lhe contar.
O importante é tocar. Em frente.

(ah, a música... poderia não ser um dia, mas um estado: este! Tocando em frente.)

sábado, 22 de dezembro de 2007

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Natal

por que será
que quando a gente relê
o que um dia foi
parece que volta a ser
sem ser
e parece que dói de novo
sem doer?

e parece que dói de novo
até morrer?

e parece que dói de novo
e dói de novo
e dói.

por que será que a gente relê?
pra que serve reler?

é natal?

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

mais micros
CHICLETE BOTÃO FORMADEGELO ALGODÃO
PORCO MEL JEANS PEDRA CHUVA NARIZ PORTA
DESOBEDIENTE

- Alô, doutora Simone?
Ai, sabe, a coroa caiu...

BOTÕES
- Fecha a camisa, engole essa rosa,
chama logo esse elevador e se manda!

FÔRMINHAS
- Quem pegou os peixinhos congelados?
- As crianças colocaram no suco.

SUAVIDADE NO BORDEL
- E aí, essas putas dão tudo?
- Tudo não, mas algo dão.

DESTINO
Ele nasceu rosa, cresceu, engordô.
O pai pegô o facão e... oinc!

ENCANTADORA DE ABELHAS
Tentei imitar Edgie Threadgoode.
Morri melada com 412 picadas.

A PRIMEIRA VEZ
Ainda se usava ser virgem
quando ela tirou a calça Lee.

PEDRA
Chutei e fui.

FALTA DE FÉ
Foram à missa rezar para chover,
mas não levaram o guarda-chuva.

PÂNICO
Taxa de natalidade dispara no Líbano.
Falta ar.

FUGA FRUSTRADA
Quando a morte bateu em minha porta,
fugi pela janela. Eu morava no 18º.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

É que a viagem certa não existe mais.
Daí tanto faz.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Quase de volta.
Quase.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Mais

Meias
Prefiro um amor para esquentar meus pés.
Cócegas
Depois dos treze, têm outro nome.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Sempre pra você
Saudade
Não vejo a hora
de rever o meu amor
e acertar os ponteiros.
Parede
Parada.
Parede Amarela
O rato morreu soterrado
depois de roer o engano.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Os Meus Contos Curtos

Café
Quando ela foi,
ele veio.
Cimento Fresco
Pisei sem querer.
Machucou pra sempre.
Gata
A mulher que eu amo é quase um bichano.
Mas quem lambe ela sou eu.
Divórcio Vampiresco
Só porque ele mordeu o pescoço da vizinha.
Ditadura

Ficamos
Assim:
Dezoito
Está
Lindo.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

DEZOITO DE OUTUBRO DE DOIS MIL E SETE

domingo, 30 de setembro de 2007

desejo

um dia alguém me cantou isto.
e conseguiu o que queria.
agora eu canto pra você.
e espero conseguir...

ah! como eu queria
te dizer alguma coisa
que te afastasse do peito
toda essa angustia, esse medo
te devolvesse a alegria
te resolvesse os delirios

ah! como eu queria
te alucinar por completo
de tanto amor, tanto afeto
te recobrar a esperança
e te levar lá pra casa
pra eu cuidar de você

ah! como eu queria
te despertar já que o dia
nos deu o sol de presente
e a gente pode sonhar

ah! como eu queria
me esparramar no teu colo
te receber como a areia
recebe as ondas do mar

ah! como eu queria!
ah, como eu queria

Fabio Jr.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Um dia
Caminhávamos, juntos e separados, entre os desvios bruscos da floresta. (...)
Que casas, que deveres, que amores havíamos largado - nós mesmos o não saberíamos dizer. Não éramos, nesse momento, mais que caminhantes entre o que esquecêramos e o que não sabíamos, cavaleiros a pé do ideal abandonado. Mas nisso, como no som constante das folhas pisadas, e no som sempre brusco do veneno incerto, estava a razão de ser da nossa ida, ou da nossa vinda, pois, não sabendo o caminho ou porque o caminho, não sabíamos se partíamos se chegávamos. E sempre, em torno nosso, sem lugar sabido ou queda vista,
o som das folhas que escombravam adormecia de tristeza a floresta.
Nenhum de nós queria saber do outro, porém nenhum de nós sem ele prosseguiria. A companhia que nos fazíamos era uma espécie de sono que cada um de nós tinha. O som dos passos uníssonos ajudava cada um a pensar sem o outro, e os próprios passos solitários tê-lo-iam despertado. A floresta era toda clareiras falsas, como se fosse falsa, ou estivesse acabando, mas nem acabava a falsidade, nem acabava a floresta. Nossos passos uníssonos seguiam constantes, e em torno do que ouvíamos das folhas pisadas ia um som vago de folhas caindo, na floresta tornada tudo, na floresta igual ao universo.
Quem éramos?
Seríamos dois ou duas formas de um? Não o sabíamos nem o perguntávamos. Um sol vago devia existir, pois na floresta não era noite. Um fim vago devia existir, pois caminhávamos. Um mundo qualquer devia existir, pois existia uma floresta. Nós, porém, éramos alheios ao que fosse ou pudesse ser, caminheiros uníssonos e intermináveis sobre folhas mortas, ouvidores anônimos e impossíveis de folhas caindo. Nada mais. Um sussuro, ora brusco ora suave, do vento incógnito, um murmúrio, ora alto ora baixo, das folhas presas, um resquício, uma dúvida, um propósito que findara, uma ilusão que nem fora - a floresta, e dois caminheiros, e eu, eu, que não sei qual deles era, ou se era ou dois, ou nenhum, e assisti, sem ver o fim, à tragédia de não haver nunca mais do que o outono e a floresta, e o vento sempre brusco e incerto, e as folhas sempre caídas ou caindo. E sempre, como se por certo houvesse fora um sol e um dia, via-se claramente, para fim nenhum, no silêncio rumoroso da floresta.
do Desassossego, Fernando Pessoa

terça-feira, 11 de setembro de 2007


DIVA
Dante Ozzetti

Cada palavra que eu não digo
Digo
Digo-lhe tudo pra se parecer comigo
Cada palavra que eu não deva
Digo
Devo-lhe tudo pra me parecer contigo

sábado, 8 de setembro de 2007

Before Sunset

I feel I was never able to forget anyone I've been with.
Because each person have, you know, specific qualities.
You can never replace anyone. What is lost is lost.
Each relationship, when it ends, really damages me. I haven't fully recovered.
(...) I will miss of the person the most mundane things.
Like I'm obsessed with little things. Maybe I'm crazy, but...
When I was a little girl, my mom told me that I was always late to school.
One day she followed me to see why.
I was looking at chestnuts falling from the trees, rolling on the sidewalk...
or ants crossing the road... the way a leaf casts a shadow on a tree trunk...
Little things. I think it's the same with people.
I see in them little details, so specific to each other, that move me,
and that I miss, and... will always miss.
You can never replace anyone, because everyone is made of such beautiful specific details.

Celine, em Antes do Pôr-do-sol
que eu vi hoje depois de Antes do Amanhecer
e antes de Premonições, Como Água Para Chocolate e Indochina

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

independência ou morte

hoje faltei
não tem presente
o passado é um grito
o futuro
mente

(entre mortos e muito feridos
do dia da independência: eu.)

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

tribunal

às vezes escrevo só por escrever
não quero dizer nada
nem falo de mim
enfim

e um cachorro fofo
é só um cachorro fofo

parada

caminha
a linha
fina
mina
a dor
o amor

chora
a hora
funda
inunda
a dor
o amor

cede
e pede
colo
esfolo
a dor
o amor

corre
e morre
fraca
aplaca
a dor
o amor

a dor
o amor

não sei mais escrever outra coisa.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

ruínhá

não há trégua, não há.
não há cachoeira.
não há resgate.
não há, simplesmente, ar.
não há segunda chance.
não há o romance ideal.
não há, eu sei, não há.
não há mentira que sustente.
não há memória.
não há presente.
não há perdão, perdão.
não há esperança.
não há.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

o rato
(caio fernando abreu)

Assim: do lado direito, um casal de velhos; do lado esquerdo, uma mulher com duas crianças atrás, dois rapazes de ar indefinido à frente, a toalha vermelha da mesa ampliando-se em perspectiva até a janela aberta para a noite. O ar ressecado estrangula os movimentos, depositado como poeira sobre as faces desfeitas de feições, expressões escorrendo em suor ao calor inesperado sobrevindo depois da chuva. Um rato caminha sobre uma das vigas de sustentação. Ele olha o rato, e o rato não o vê. Olha o rato, mas as outras pessoas não sabem que seu olhar olha o rato. Sozinho naquele bar, naquela rua, em todos os bares em todas as ruas do mundo, no mundo inteiro - sozinho: ele e o rato, natureza cinza equilibrada sobre quatro patas.

-Você prefere lasanha ou ravióli?

-O meu dia só existe porque você existe dentro dele.

-Garçom, por favor .

-Vou-me embora, não suporto mais este bar, este calor, esta mesa. Não suporto mais você.

-Eu quero batatinha frita.

-Hoje existir me dói feito uma bofetada.

-Sem cebola, por favor.

Quando partiu, levava as mãos no bolso, a cabeça erguida. Não olhava para trás, porque olhar para trás era uma maneira de ficar num pedaço qualquer para partir incompleto, ficado em meio para trás. Não olhava, pois, e, pois não ficava. Completo, partiu. Não vê, mas pode sentir o toque áspero da pele recoberta de pêlos em suas mãos que seguram o garfo e a faca, e o toque é quase uma carícia - uma nauseante carícia de bicho à procura de qualquer coisa. (...)

-Não posso comer massa, meu bem, engordo horrores.

-Porque se você não vem é como se o tempo fosse passado em branco, como se as coisas não chegassem a se cumprir porque você não soube delas.

-Infelizmente o camarão acabou.

-Estou completamente cheio.

-Bem molezinha, com bastante sal.

-Mas este prato está sujo, que absurdo!!!


-Tudo dói, e eu já nem sei mais para onde ir nem o que fazer, se ao menos você me amasse um pouco, não estaria aqui e agora. neste bar. sozinho. longe de você e de mim.

O rato, agora, em passos hesitantes, a cauda enroscando-se em madeiras. Esfarela devagar um pedaço de pão, o miolo escorre por entre os dedos, feito água, feito vento, feito todas as coisas que passam e não marcam em nada, em nenhum recanto do corpo físico além de memória. (...) O sexo: ponto de chama entre as pernas. Estende a mão, mas o rato foge num movimento brusco.

-Prefiro carne, ao menos não engorda tanto.

-E se você vem, fica tudo maior, mais amplo, sei lá mas é como se eu existisse dum jeito mais completo, entende?

-Temos peixe. Filé de peixe, serve?

-De repente parece que todo mundo vai começar a morder a gente.

-Feijão não, eu odeio feijão.

-Uma merda, tudo. Uma grande merda.

Súbito escorrega para uma região desconhecida, onde tudo se dilui em sombra, em silêncio. Na sombra e no silêncio, o rato desliza manso, subindo a parede até alcançar novamente a viga que o sustenta. A mulher o encarou ofendida: se você gosta de homem, o problema é seu, meu filho, não tenho nada com isso. Insistiu. O guarda o soltou e ele saiu caminhando de cabeça baixa, depois de ter jogado o cartaz na sarjeta: "O povo passa fome". Jamais olhava para trás, jamais: o que estava feito, estava feito, estava consumado, estava para sempre imutável, inamoldável, fechado em si mesmo, estanque: o tempo. (...) Eu pago, disse. Mas o rato voltou, sem que ninguém o veja.

-Tudo bem, um bife, mas bem pequenininho, bem passado e sem molho, hein?

-Ninguém toma de ninguém esse tipo de coisa, ninguém.

-Temos sopas, também. Madame é quem sabe.

-Me deixa ir embora. Eu não quero mais te ver. Nunca mais.

-Arroz? Mas eu só queria batatinha.

-E a faca? Será que é preciso comer com as mãos?

-Se ao menos dessa revolta, dessa angústia, saísse alguma coisa que prestasse.

Qualquer coisa: eu teria ao menos algo em que me segurar, qualquer coisa. O extremo da revolta seria a coisa feita, pronta para que segurassem nela. Eram vermelhos? Ou seriam azuis? Nunca vira os olhos de um rato bem de perto. Só a cauda, estendendo-se de elo em elo, até o final pontudo, como uma serpente. Não suportaria encarar um animal, qualquer que fosse. (...) A cama vibrava. A noite vibrava. O mundo vibrava. (...) A mão machucada de sustentar o grito do cartaz, os pés sob a revolta, os ombros doídos embaixo da contestação. Foi de repente que começou a correr para longe daquilo, esmagado pela exigência, pelo espanto de estar pedindo alguma coisa que nem para si era. Pedir exigia uma participação íntima que ele não tinha, e seus gritos ressoariam falsos por todas as esquinas, seus ombros curvariam ao peso acumulado, a cabeça baixa, rabo entre as pernas. O susto do rato com a bolinha de pão jogada sobre a cabeça.

-Imagine, ele falou que tinha achado o chapéu detestável.

-Só eu sei que cheguei à humildade máxima que um ser humano pode atingir: confessar a outro ser humano que precisa dele para existir.

-Quem sabe uma feijoada?

-Daqui a pouco vai começar a chover de novo.


-Tá bem, mas só se vier um sorvete depois.

-Quer fazer o favor de me alcançar o copo?

-Mas não sai nada. Nada. Nem uma lágrima.

Aproxima-se. Os olhos agrandaram na procura consumada em encontro, as patas avançaram para o objeto - o cinzento arrastando-se sobre o amarelo dos tapetes.

-Inveja, pura inveja, conheço demais essa gente.

-E no momento em que se confessa a precisão, perde-se tudo, eu sei.

-Não? Quem sabe então um... um... um...

-Não adianta insistir. Agora eu vou.

-De creme, não. Quero de morango.

-E essa coca-cola que não vem?

-Sei lá, vou dormir que é melhor.


Agrandava-se. Senhora dona Cândida, coberta de ouro e prata, descubra o seu rosto, quero ver a sua graça. Descobria-se. Afastava o ouro, a prata, as mãos que escondiam o rosto e dentro, o que havia? Contém-se e começa a contar-se baixinho: Era uma vez: assim: do lado direito, um casal de velhos; do lado esquerdo, uma mulher com duas crianças; atrás, dois rapazes de ar indefinido; à frente, a toalha vermelha da mesa ampliando-se em perspectiva até a janela aberta para a noite". E o rato. Quis gritar, mas era tão tarde, era muito tarde, era sempre tarde. Viu o garçom arrumando os pratos sobre a mesa, a fumaça elevando-se da comida quente. Mas a vidraça ainda não refletia a cor exata dos olhos. Baixou a cabeça para o prato, apoiado nas quatro patas cinzentas, o focinho fino, as pessoas esfarelando pães e jogando-lhe pedaços, espantou-se da delicadeza de suas próprias garras, da leveza de seu próprio corpo, agora apertam sua cauda entre os pés, e ele foge, tenta fugir, mas alguém sopra em seus ouvidos algo parecido com uma canção de ninar. Ou uma canção de guerra, de ódio, de nojo, de sangue, uma cantiga de roda, ou simplesmente um grito estridente, agudo, trêmulo, incompreensível. Um grito humano.

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

virou história

hoje me tocou
no rádio
uma saudade

já passou

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Água Viva
Clarice

Mas não há paixão sofrida em dor e amor a que não se siga uma aleluia.

Sei o que estou fazendo aqui: conto os instantes que pingam e são grossos de sangue.

Equilíbrio perigoso, o meu, perigo de morte de alma.

Nós - diante do escândalo da morte.

Vou parar um pouco porque sei que o Deus é o mundo. É o que existe.

Não gosto é quando pingam limão nas minhas profundezas
e fazem com que eu me contorça toda.
Os fatos da vida são o limão na ostra?
Será que a ostra dorme?

O que te escrevo não vem de manso, subindo aos poucos até um auge para depois ir morrendo de manso.
Não: o que te escrevo é de fogo como olhos em brasa.

Recebi uma carta de S. Paulo de pessoa que não conheço.
Carta derradeira de suicida. Telefonei para São Paulo.
O telefone não respondia, tocava e tocava e soava como num apartamento em silêncio.
Morreu ou não morreu. Hoje de manhã telefonei de novo: continuava a não responder.
Morreu, sim. Nunca esquecerei.

Agora - silêncio e leve espanto.
de repente não mais

é sempre assim
de repente
ainda que seja
repetido
o de repente
que nem é
de fato
surpresa
nem de novo
o mesmo
de sempre

não se espera
o que não se quer
se desespera
o querer
qualquer
esperado
sempre
porém nunca
desejado
de repente
é

sempre
de repente
finda
o que nem
ainda
havia se tornado
o repetido
esperado
da vida
alegre
de novo

e segue
embora
a gente
negue
a dor
velha
dos mesmos
erros
cachorros
em qualquer
língua

terça-feira, 21 de agosto de 2007

III
Fato: Acordei Do sEu Lado
Finalmente Arriscamos. Desejo, Excesso, Loucura.
Fizemos Amor, Doentes E Lancinantes.
Ficamos, Assim, Divagando Entre Lambidas.
Festejando A Demais Esperada Liberdade.
Farsa? Ah, Deus... Eu Lamento.
Foda? Ah, Deixa Escorrer Logo.
Finda? Ah, Duvido. Embora Longe.
Falece A Dor Enquanto Lançamos
Falas Agudas De Envolvimento Literário.
Falece A Dúvida Enquanto Ligamos
Fendas, Abraços, Dentes E Línguas.
Finalmente Amantes. Devidamente Entrelaçadas. Longes.

domingo, 12 de agosto de 2007

para não apagar

tua boca riscou
meu contorno

réptil
no corpo morno

quente
ardente
ausente

desenhei teus olhos
no grito

animal
do desejo em atrito

indecente
mente
sente

um gosto te encharca
a palavra

forte
na nuca me crava

o dente
inocente
demente

repete a pintura
do traço

canino
teu abraço

carente
doente
presente

sábado, 11 de agosto de 2007

Meca Clandestina

(...) E, devagarinho, tomou-lhe a mão.
As duas palmas um pouco úmidas, um pouco trêmulas, uniram-se.
A campainha, fora, tocou. Luísa desprendeu a mão, bruscamente.
- É alguém - disse agitada.
Vozes baixas falavam à cancela.
Basílio teve um movimento de ombros contrariado; foi buscar o chapéu.
- Vais-te? - exclamou ela toda desconsolada.
- Pudera! Não posso estar só contigo um momento!
A cancela fechou-se com ruído. Não é ninguém, foi-se - disse Luísa.
Estavam de pé, no meio da sala.
- Não te vás! Basílio!
Os seus olhos profundos tinham uma suplicação doce.

Basílio pousou o chapéu sobre o piano; mordia o bigode um pouco nervoso.
- E para que queres tu estar só comigo? - disse ela. - Que tem que venha gente?

E arrependeu-se logo daquelas palavras.
Mas Basílio, com um movimento brusco, passou-lhe o braço sobre os ombros,

prendeu-lhe a cabeça, e beijou-a na testa, nos olhos, nos cabelos, vorazmente.
Ela soltou-se a tremer, escarlate.
- Perdoa-me - exclamou ele logo, com um ímpeto apaixonado. - Perdoa-me.

Foi sem pensar. Mas é porque te adoro, Luísa!
Tomou-lhe as mãos com domínio, quase com direito.
- Não. Hás de ouvir. Desde o primeiro dia que te tornei a ver estou doido por ti,

como dantes, a mesma coisa. Nunca deixei de me morrer por ti. (...)


(...) e ele quis-lhe ensinar então a verdadeira maneira de beber champanhe.
Talvez ela não soubesse!
- Como é? - perguntou Luísa erguendo o copo.
- Não é com o copo! Horror! Ninguém que se preza bebe champanhe por um copo.

O copo é bom para o Colares...
Tomou um gole de champanhe e num beijo passou-o para a boca dela.

Luísa riu muito, achou "divino"; quis beber mais assim.
Ia-se fazendo vermelha, o olhar luzia-lhe.
Tinham tirado os pratos da cama; e sentada à beira do leito,

os seus pezinhos calçados numa meia cor-de-rosa pendiam,
agitavam-se, enquanto um pouco dobrada sobre si, os cotovelos sobre o regaço,
a cabecinha de lado, tinha em toda a sua pessoa a graça lânguida de uma pomba fatigada.
Basílio achava-a irresistível; quem diria que uma burguesinha podia ter tanto chique,

tanta queda? Ajoelhou-se, tomou-lhe os pezinhos entre as mãos, beijou-lhos;
depois, dizendo muito mal das ligas "tão feias, com fechos de metal",
beijou-lhe respeitosamente os joelhos; e então fez-lhe baixinho um pedido.
Ela corou, sorriu, dizia: "não! não!"
E quando saiu do seu delírio tapou o rosto com as mãos, toda escarlate;
murmurou repreensivamente:
- Oh, Basílio!
Ele torcia o bigode, muito satisfeito. Ensinara-lhe uma sensação nova; tinha-a na mão!
Só às seis horas se desprendeu dos seus braços.
Luísa fez-lhe jurar que havia de pensar nela toda a noite: - Não queria que ele saísse;
tinha ciúme do Grêmio, do ar, de tudo! E já no patamar voltava, beijava-o, louca, repetia:
- E amanhã mais cedo, sim? Para estarmos todo o dia.
- Não vais ver a D. Felicidade?
- Que me importa a D. Felicidade! Não me importa ninguém! Quero-te a ti! Só a ti!
- Ao meio-dia?
- Ao meio-dia!
Quanto lhe pesou à noite a solidão do seu quarto!

Tinha uma impaciência que a impelia a prolongar a excitação da tarde, agitar-se.
Ainda quis ler, mas bem depressa arremessou o livro;
as duas velas acesas sobre o toucador pareciam-lhe lúgubres;
foi ver a noite; estava tépida e serena.
Chamou Juliana (...)

O Primo Basílio, Eça de Queirós
Mentirinha

Olhe aqui, olhos de azeviche
Vamos acertar as contas
porque é no dia de hoje
que cê vai embora daqui...
Mas antes, por obséquio:
Quer me devolver o equilíbrio?
Quer me dizer por que cê sumiu?
Quer me devolver o sono meu doril?
Quer se tocar e botar meu marcapasso pra consertar?
Quer me deixar na minha?
Quer tirar a mão de dentro da minha calcinha?
Olhe aqui, olhos de azeviche:
Quer parar de torcer pro meu fim
dentro do meu próprio estádio?
Quer parar de saxdoer no meu próprio rádio?
Vem cá, não vai sair assim...
Antes, quer ter a delicadeza de colar meu espelho?
Assim: agora fica de joelhos
e comece a cuspir todos os meus beijos.
Isso. Agora recolhe!
Engole a farta coreografia destas línguas
Varre com a língua esses anseios
Não haverá mais filho
pulsações e instintos animais.
Hoje eu me suicido ingerindo
sete caixas de anticoncepcionais.
Trata-se de um despejo
Dedetize essa chateação que a gente chamou de desejo.
Pronto: última revista
Leve também essa bobagem
que você chamou
de amor à primeira vista.
Olhos de azeviche, vem cá:
Apague esse gosto de pescoço da minha boca!
E leve esses presentes que você me deu:
essa cara de pau, essa textura de verniz.
Tire também esse sentimento de penetração
esse modo com que você me quis
esses ensaios de idas e voltas
essa esfregação
esse bob wilson erotizado
que a gente chamou de tesão.
Pronto. Olhos de azeviche, pode partir!
Estou calma. Quero ficar sozinha
eu co'a minha alma. Agora pode ir.
Gente! Cadê minha alma que estava aqui?


Texto para uma separação, Elisa Lucinda

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

A Arte de Perder
(from my beloved teacher of poetry)

The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.

Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.

Elizabeth Bishop, One art

terça-feira, 7 de agosto de 2007

cort-a-zar

o punhal ficara morno junto a seu peito,
e debaixo batia a liberdade escondida.

ela, então, meteu-lhe o punhal no estômago,
aquele mesmo estômago que dóia quando se falavam,
e acabou com a tortura, assim, de uma vez,
com um punhal sangrando a alma e a clandestinidade.
cortou-lhe
da vida.

o punhal ficara morno junto a seu peito,
e debaixo batia a liberdade, escondida.
Your never gonna break my Faith
Bobby's soundtrack

domingo, 5 de agosto de 2007

Pequenos Milagres
(...)
Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave,
surda-muda, foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça
(...)
Adelia

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Nãos

Faz frio
Faz calor
Chove
Não chove
Não há vento
Nem sol
Nem céu
Nem noite
Nem manhã
Nem dia

Há nãos e determinações
Escolhas opostas e desinteresse
Há escuridão de manhã
Cansaço no fim da claridade
Há saudade de nada e de tudo

Há nãos e decisões contrárias
Vontades arbitrárias e medos
Há escuridão de manhã
Cansaço no fim da tarde
Há saudade de tudo e de nada

Faz tempo
Faz espaço
Sonhe
Não sonhe
Não há alento
Nem ar
Nem chão
Nem hoje
Nem amanhã
Nem havia